No último texto se anunciou que os “Diálogos Socráticos” seriam como que o gênero literário que busca replicar na um texto algo daquilo que produzia a atividade filosófica socrática naqueles que o escutavam.
Se tratando então de um gênero literário, convêm que conheçamos algumas de suas características que logo nos permitam entender seus limites e finalidades.
1- O Lugar dos escritos na filosofia de Platão.
Em primeiro lugar temos obras com uma tripla finalidade: protrética, educativa e moral.
O que acontece é que, ainda que essas 3 finalidades apareçam em todos os escritos platônicos, em alguns são mais evidentes que em outros.
Depois, devemos entender que esses os Diálogos Socráticos são colóquios ideais que parecem ter uma função regulativa dentro da Academia ao fixar uma metodologia para as discussões que ali acorriam. Isso quer dizer que não possuem finalidade histórica ou biográfica, de modo que não pretendem apresentar encontros que realmente ocorreram ou exatamente tal como ocorreram. Claro que isso não quer dizer que tudo ali seja mentira ou inventado, mas simplesmente que Platão não é um biógrafo de Sócrates que se limita a simplesmente transcrever as discussões que presenciou.
Com relação às Doutrinas Não Escritas, dizemos que os discursos contêm alusões hipomnemáticas, quer dizer, que só podem ser bem compreendidas por aqueles que anteriormente aprenderam por via oral as “coisas de maior valor”. E mais, não se trata somente de fazer referências a conhecimentos já recebidos por outra via, mas também de começar um processo cognitivo que terá seu fim não no próprio escrito, mas na atividade oral dentro da Academia.
[É como se o escrito fosse a versão beta daquilo que na Academia é dado de maneira completa]
Em outras palavras, tal como já indicamos acima, nenhuma obra de Platão é auto-suficiente, mas sempre precisa do socorro de outra obra ou da atividade oral do autor na Academia.
[Sobre as primeras impressões]
Antes de seguir, gostaria de deixar aos leitores uma lição importantíssimas que aprendi com meu professor de História da Filosofia Antiga já no primeiro período da faculdade: “Ao ler Platão, nunca devemos ficar com a primeira impressão!!!”.
É muito comum que algum desavisado leia apenas uma obra de Platão e comece a tirar várias conclusões sobre o autor, porem isso é muito perigoso. Coisas que parecem estranhas ou equivocadas em determinada obras podem ser melhor ditas ou explicas em outras. Pontos escuros em seus escritos são aclarados se levamos em conta o testemunho de seus discípulos que escreveram sobre o que ele não escreveu. O mesmo professor nos dizia: “Platão é como uma cebola, tem que ir tirando as cascas pra chegar até o fim”. E de fato é assim, pois o filósofo não parece estar simplesmente escrevendo sobre temas distintos, mas levando seus leitores por um itinerário filosófico.
Ao longo de todos os escritos as ideias vão sendo retomadas, revistas, remodeladas etc… Mas por aqui eu paro, pois pra falar disso eu teria que pressupor uma unidade na doutrina platônica que ainda não justifiquei.
[Vejamos então essa unidade]
Se partimos do modelo de interpretação das obras platônicas que conta com o “socorro” das Doutrinas Não Escritas, podemos propor resoluções bastante interessantes para um dos maiores problemas que ocupou os estudiosos da filosofia de Platão, isto é, a unidade sistemática que possui sua filosofia. Ainda que o autor tenha deixado uma serie de obras que apresentam grande variedade de conceitos e ideias, nunca apresentou todo seu pensamento de forma sistemática e orgânica. A única evidência de que o filósofo ao menos pretendia criar um sistema que abarcasse globalmente a realidade, bem como algumas partes mais essenciais da mesma, nos é dada pela tradição indireta.
Obviamente quando falamos de sistema não nos referimos a uma estrutura de pensamento fechada a qual um vai tentando encaixar a realidade. No contexto platônico é o mesmo que falar de uma tentativa de unificar vários contexto em função de um conceito supremo (de maior valor). Na prática significa que as muitas ideias que vão aparecendo nas obras platônicas, e que as vezes podem parecer incompletas ou contraditórias entre si, devem ser entendidas em função das “coisas de maior valor”.
Além disso, também não podemos ler uma de suas obras fora do conjunto das demais, pois muitas vezes o que Platão começa em uma termina em outra. Saber o que Platão falou sobre determinada virtude em uma de suas obras não significa necessariamente saber o que o autor pensar sobre essa virtude. Um exemplo é o caso da discussão sobre a coragem da obras Laques onde duas pessoas tentam definir o que é a coragem e, quando Sócrates não aceita nenhuma das duas definições, o diálogo termina em aporia. Apesar disso, quando lemos a República, Platão coloca Sócrates definido a coragem utilizando como que uma mescla dos dois conceitos apresentados anteriormente no Laques.
Em verdade, o que está sendo proposto é que se pense nas obras de Platão não como um sistema dogmático de pensamento, mas como um todo orgânico unificado em torno de uns conceitos supremos que só temos acesso por meio da Tradição Indireta. Desse modo, tenho a esperança que se um dia vocês se aventurarem a ler alguma obra de Platão e se depararem com alguma ideia ou conceito estranho, saberão que aquilo não é necessariamente a opinião final do filósofo, mas apenas uma parte do itinerário de conhecimento que o autor parece estar propondo com seus escritos.
2. Características do estilo de Platão:
Existem dois elementos do estilo platônico que se não forem levados em conta podem levar a mal entendidos sobre sua filosofia. São elas a ironia e o mito.
Tal como vimos quando estudamos Sócrates, a ironia era um dos mais comuns recurso do autor quando realizava seu famoso exame. Naturalmente, sendo discípulo de Sócrates e colocando seu mestre como o personagem principal de muitas de suas obras, Platão também utilizou de maneira metodológica a ironia.
Caso você seja uma pessoa muito irónica ou conheça alguém assim, provavelmente já entendeu o problema que isso acarreta pra leitura de Platão. Nem sempre está claro quando o autor está sendo irónico, de maneira que uma leitura desatenta pode acabar passando direto por uma ironia sem entender que se trata disso. Além do mais, tal como já apontamos em Sócrates, devemos ter cuidado para não entender a ironia de Platão como uma forma de niilismo. Quando Platão é irónico não pretende confundir sues leitores, mas apresentar indiretamente aos que são capazes de entender algo que, mesmo se fosse dito diretamente aos incapazes, acabaria sendo nocivamente mal interpretado.
Platão queria suscitar a verdade e não somente a falar. E nesse sentido, a ironia de Platão tem uma função parecida com a maiêutica socrática, quer dizer, levar o indivíduo a descobrir por si mesmo a verdade de algo.
Outro elemento metódico das obras de Platão é o uso de elementos míticos em suas explicações. Pode parece estranho que um filósofo do porte de Platão se utilize de mitos para explicar suas teorias, afinal, a filosofia teria surgido justamente como um afastamento das explicações míticas sobre a realidade e prol da explicação racional. O que acontece é que Platão relaciona mito e razão de uma maneira até então nunca feita, e mais, a própria noção de mito do autor é diferente na noção de mito que havia no momento pré filosófico.
O mito de Platão deixa que a razão o despoje de seus elementos mais fantásticos até o ponte de permanecer somente sua força alusiva e intuitiva, de modo que aparece como uma forma de convencer também as camadas emotivas do sujeito.Em outras palavras, se trata de um falar por imagens que permanece válido na medida em que o ser humano não pensa somente por conceitos.
Além disso, os mitos platônicos costumam aparecer ligados aos temas escatológicos de modo que, mais do que uma expressando fantástica, é como uma expressão de fé ou ainda, segundo a palavra que o autor utiliza no Fedro, élpis (ἐλπίς), que significa esperança. Se pode dizer que grande parte das reflexões escatológicas de Platão aparecem como uma espécie de fé com razões.
[Escatologia é propriamente uma parte da teologia, porem, segundo Abbagano, o termo é muitas vezes utilizado por filósofos para fazerem considerações sobre os estágios finais do mundo ou do homem]
O mito (fé/esperança) busca na razão esclarecimento e a razão busca no mito (fé/esperança) um complemento. Essa fé/esperança que se expressa nos mitos tem então duas funções nas reflexões escatológicas: ou ela eleva o espírito humano a âmbitos superiores que a razão sozinha teria dificuldade de alcançar (ainda que sejam racionalmente acessíveis); ou ela, uma vez que a razão tenha alcançado seus limites, supera esses limites de maneira intuitiva.
A situação, contudo, fica mais complicada quando também identificamos o uso dos mitos em temas distintos da escatologia. Em certos casos, ele significa uma coisa que chamamos de “narração provável”. Para que isso seja bem entendido, vou adiantar algumas informações sobre a gnosiologia (Teoria do Conhecimento) de Platão que em texto posteriores trabalharemos melhor.
Platão concebe que há uma diferença entre conhecer coisas mutáveis e imutáveis, pois supõe uma afinidade estrutural entre as coisas que conhecemos e o conhecimento que temos delas. Isso quer dizer que se o objeto que se pretende conhecer é o ser estável e firme (imutável), então o nosso conhecimento sobre isso também será estável, imutável e fundado sobre a razão, de modo que poderemos captar a verdade pura; de modo contrário, quando o objetos que se pretende conhecer estão sujeito à geração e ao movimento (ou seja, é mutável), o conhecimento que temos disso será no máximo verossímil e fundado sobre o que o autor chama de crença.
Como Platão concebe o universo físico não como algo imutável, mas apenas como uma imagem do Ser puro, não é possível dele um conhecimento verdadeiro em sentido absoluto, mas somente um conhecimento verossímil. Esse conhecimento verossímil é justamente o mito entendido como narração provável, de maneira que, em certo sentido, toda a cosmologia e a física de Platão será mito provável.
Por último, ainda devemos ter em mente que em determinada passagem do Fedro, Platão afirma que todo discurso sobre temas filosóficos que não siga uma estrutura dialética (grande parte de seus diálogos, por exemplo) também podem ser considerados como uma espécie de mito.
Ao fim, o que deve fica pra nós sobre o uso que Platão faz dos mitos é que em nenhum momento a razão aparece subordinada a eles, mas sim estimulada ou enriquecida pelos mesmo, de modo que, diferente do que passa com a ironia, Platão costuma deixar bem claro o que faz parte de seu discurso racional e o que ele diz em tom mítico.
3- Cronologia dos escritos de Platão
Finalmente vamos tentar propor uma possível cronologia para as obras de Platão, porem tendo em vista que não podemos ter aqui a pretensão de uma palavra absoluta sobre o assunto.
Colocar as obras de Platão em ordem só faz sentido se pensarmos que existe uma “evolução” do pensamento de Platão, ou seja, que Platão teve como que fases em sua atividade como escritor. Isso foi proposto por primeira vez em 1839 por Karl Friedrich Hermann e rapidamente foi acolhida pelos especialistas e, em muitos pontos, confirmada por análises estilísticas, linguísticas e filológicas. Vejamos então quais os critérios pelos quais podemos montar um esquema de cronologia dos diálogos de Platão:
-Testemunhos: basicamente seria seguir o que os antigos disseram sobre as obras de Platão para ter alguma referência. Como exemplo temos Aristoteles que nos indica que Leis foi escrita depois de República. O problema é que também existem informações que não parecem fazer o menor sentido se utilizarmos os demais critérios, de modo que esse critério costuma estar subordinado aos demais.
-Estilo: são particularidades na forma de escrever e nos usos dos termos que vão mudando, normalmente, de maneira inconsciente na obra de um escritor, de maneira que podemos então deduzir que obras fazem parte de um mesmo período da vida de Platão segundo semelhanças estilísticas que têm entre si e que marcam aquele período. Temos por exemplo um certo uso de estilemas (essas particularidades estilísticas) que são tirados das Leis e servem para indicar que obras como Parmenides, Político, Sofista, Teeteto, Filebo, Timeu e Crítias fazem parte desse mesmo período.
-Referências: muitos diálogos fazem referências a pessoas e acontecimentos, de modo que nos permite saber pelo menos que não pode ter sido escritos antes de tais acontecimentos ou antes de Platão ter tido contato com essas pessoas ou com seus pensamentos e feitos. Dai que, por exemplo, sabemos que o Górgias deve ter sido escrito depois de 393 a.C. pelo fato de que fala de um discurso contra Sócrates que um tal Polícrates fez nessa época.
-Relações entre os diálogos: consiste em observar quando um diálogo faz referência ao outro para sabermos qual veio antes e qual veio depois, e mais, se algum pode ser considerado como uma imediata continuação de outro. O melhor exemplo que temos do uso desse critério é o indicativo de que as obras Político, Sofista e Teeteto parecem ser continuação uma da outra, quer dizer, uma sequência.
-Conteúdo dos diálogos: basicamente é ver como o conteúdo filosófico dos diálogos pode ser considerado pertencente a uma época ou outra da vida de Platão, porem não se trata de um critério muito seguro, de modo que sempre é utilizado tendo em vista o que já foi estabelecido pelos demais critérios. Esse é um dos critérios que aponta para o conjunto dos diálogos que dizemos ser do período socrático, afinal, todos costumam girar em torno dos mesmo tipo de problema.
-Construção narrativa: se trata de observar o quanto estão desenvolvidos os aspectos narrativos do diálogo tal como a caracterização dos personagens ou a descrição do cenário; se pensa que os diálogos onde isso é mais abundante são anteriores, enquanto que a medida em que Platão envelhece vai dando mais enfoque ao conteúdo filosófico. Algo interessante é o fato de que o Parmenides é o único diálogo do seu grupo que está numa forma narrativa, enquanto que os demais aparecem em forma direta. Dessa maneira se pode propor que o Parmenides seria o o primeiro de seu grupo.
Baseando-se então nesses métodos, várias propostas foram apresentadas para tentar organizar cronologicamente as obras de Platão. Aqui e apresentará uma junção de esquemas de alguns autores para tentar apresentar, pelo menos superficialmente, uma maneira de pensar a cronologia dos escritos platônicos…
a) Período Socrático: são diálogos em forma dramática que parecem estar entre o ano de 399 a.C. (morte de Sócrates) e 388 a.C. (primeira viagem para Italia). Costumam sempre chegar em aporias, quer dizer, existe uma busca pela solução de determinados problemas sem que nunca se alcança essas soluções, de modo que os interlocutores do personagem Sócrates desistem de continuar a busca.
A problemática costuma girar em torno das questões éticas, de modo que Platão estaria partindo do ponto onde chegou Sócrates. Além disso, parecem ter uma função apologética no que diz respeito a defender a figura de Sócrates, afinal, são escritos posteriores à morte do filósofo onde provavelmente seus discípulos estariam passando por algumas perseguições por parte dos democratas de Atenas.
Aqui estariam os seguintes escritos: Apologia de Sócrates, Críton, Íon, Laques, Lísias, Cármides, Eutífron e Protágoras.
b) Período de Transição: são diálogos que parecem indicar uma passagem da primeira fase à terceira.
Quase todos parecem terem sido escritos antes de 388 a.C. (primeira viagem a Italia), porem o Ménon e o Menexeno podem ter vindo depois.
Entre eles temo: Eutidemo, Hípias Maior, Crátilo, Hípias Menor, Gorgias, Ménon, Menexeno.
c) Período da Maturidade: seria a época central da atividade literária de Platão e normalmente são colocados cronologicamente entre 388 a.C. (primeira viagem a Italia) e 367 a.C. (segunda viagem a Italia).
Segundo Reale, os escritos desse período são tematizações e aprofundamentos surgidos do que chamamos de Segunda Navegação (que nos próximo texto vamos explicar com mais detalhe).
De maneira geral, se costuma dizer que os escritos que dessa fase são: Banquete, Fédon, República e Fédro.
d) Período da Velhice: é o último período da atividade literária de Platão que parecem ter sido escritos depois de 367 a.C. (segunda viagem a Italia).
Aqui temos que um grande diálogo de Platão com o eleatismo, posteriormente o pitagorismo. Em alguns diálogos Sócrates perderá sua posição de protagonista para o “Estrangeiro de Eleia” ou para o pitagórico Timeu. Ademais, muitos autores costumam indicar essa fase do pensamento de Platão como um momento de crises, superações, autocríticas e correções no que diz respeito a sua Teoria das Ideias (quem também veremos mais a fundo no prótimo texto).
Os escritos que são ditos pertencentes a essa fase são: Parmenides, Político, Sofista, Teeteto, Filebo, Timeu, Crítias e Leis.
Temos ainda a Carta VII e a Carta VIII que, devido ao conteúdo que possuem, devem ter sido escritas depois de 353 a.C. (morte de Díon).
Ao fim, o importante é que não perdemos de vista que, ainda que seja um assunto interessante, saber a ordem em que Platão escreveu suas obras não é nossa prioridade, afinal, tal como vimos, aquilo que é o pensador Platão está muito além do Platão escritor.”
Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ
Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!
Bibliografia:
-ABBAGANO, Nicolas. Historia de la Filosofia. Barcelona: Presença.
-FRAILE, Guilhermo. História de la Filosofia-Grecia y Roma. Madrid: Ed. BAC, 1976.
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993