Platão – Vida e Obras (Parte 2)

No último texto se anunciou que os “Diálogos Socráticos” seriam como que o gênero literário que busca replicar na um texto algo daquilo que produzia a atividade filosófica socrática naqueles que o escutavam.
Se tratando então de um gênero literário, convêm que conheçamos algumas de suas características que logo nos permitam entender seus limites e finalidades.

1- O Lugar dos escritos na filosofia de Platão.
Em primeiro lugar temos obras com uma tripla finalidade: protrética, educativa e moral.
O que acontece é que, ainda que essas 3 finalidades apareçam em todos os escritos platônicos, em alguns são mais evidentes que em outros.
Depois, devemos entender que esses os Diálogos Socráticos são colóquios ideais que parecem ter uma função regulativa dentro da Academia ao fixar uma metodologia para as discussões que ali acorriam. Isso quer dizer que não possuem finalidade histórica ou biográfica, de modo que não pretendem apresentar encontros que realmente ocorreram ou exatamente tal como ocorreram. Claro que isso não quer dizer que tudo ali seja mentira ou inventado, mas simplesmente que Platão não é um biógrafo de Sócrates que se limita a simplesmente transcrever as discussões que presenciou.
Com relação às Doutrinas Não Escritas, dizemos que os discursos contêm alusões hipomnemáticas, quer dizer, que só podem ser bem compreendidas por aqueles que anteriormente aprenderam por via oral as “coisas de maior valor”. E mais, não se trata somente de fazer referências a conhecimentos já recebidos por outra via, mas também de começar um processo cognitivo que terá seu fim não no próprio escrito, mas na atividade oral dentro da Academia.
[É como se o escrito fosse a versão beta daquilo que na Academia é dado de maneira completa] 
Em outras palavras, tal como já indicamos acima, nenhuma obra de Platão é auto-suficiente, mas sempre precisa do socorro de outra obra ou da atividade oral do autor na Academia.

[Sobre as primeras impressões]
Antes de seguir, gostaria de deixar aos leitores uma lição importantíssimas que aprendi com meu professor de História da Filosofia Antiga já no primeiro período da faculdade: “Ao ler Platão, nunca devemos ficar com a primeira impressão!!!”.
É muito comum que algum desavisado leia apenas uma obra de Platão e comece a tirar várias conclusões sobre o autor, porem isso é muito perigoso. Coisas que parecem estranhas ou equivocadas em determinada obras podem ser melhor ditas ou explicas em outras. Pontos escuros em seus escritos são aclarados se levamos em conta o testemunho de seus discípulos que escreveram sobre o que ele não escreveu. O mesmo professor nos dizia: “Platão é como uma cebola, tem que ir tirando as cascas pra chegar até o fim”E de fato é assim, pois o filósofo não parece estar simplesmente escrevendo sobre temas distintos, mas levando seus leitores por um itinerário filosófico.
Ao longo de todos os escritos as ideias vão sendo retomadas, revistas, remodeladas etc… Mas por aqui eu paro, pois pra falar disso eu teria que pressupor uma unidade na doutrina platônica que ainda não justifiquei.
[Vejamos então essa unidade]

Se partimos do modelo de interpretação das obras platônicas que conta com o “socorro” das Doutrinas Não Escritas, podemos propor resoluções bastante interessantes para um dos maiores problemas que ocupou os estudiosos da filosofia de Platão, isto é, a unidade sistemática que possui sua filosofia. Ainda que o autor tenha deixado uma serie de obras que apresentam grande variedade de conceitos e ideias, nunca apresentou todo seu pensamento de forma sistemática e orgânica. A única evidência de que o filósofo ao menos pretendia criar um sistema que abarcasse globalmente a realidade, bem como algumas partes mais essenciais da mesma, nos é dada pela tradição indireta.

Obviamente quando falamos de sistema não nos referimos a uma estrutura de pensamento fechada a qual um vai tentando encaixar a realidade. No contexto platônico é o mesmo que falar de uma tentativa de unificar vários contexto em função de um conceito supremo (de maior valor). Na prática significa que as muitas ideias que vão aparecendo nas obras platônicas, e que as vezes podem parecer incompletas ou contraditórias entre si, devem ser entendidas em função das “coisas de maior valor”.
Além disso, também não podemos ler uma de suas obras fora do conjunto das demais, pois muitas vezes o que Platão começa em uma termina em outra. Saber o que Platão falou sobre determinada virtude em uma de suas obras não significa necessariamente saber o que o autor pensar sobre essa virtude. Um exemplo é o caso da discussão sobre a coragem da obras Laques onde duas pessoas tentam definir o que é a coragem e, quando Sócrates não aceita nenhuma das duas definições, o diálogo termina em aporia. Apesar disso, quando lemos a República, Platão coloca Sócrates definido a coragem utilizando como que uma mescla dos dois conceitos apresentados anteriormente no Laques.

Em verdade, o que está sendo proposto é que se pense nas obras de Platão não como um sistema dogmático de pensamento, mas como um todo orgânico unificado em torno de uns conceitos supremos que só temos acesso por meio da Tradição Indireta. Desse modo, tenho a esperança que se um dia vocês se aventurarem a ler alguma obra de Platão e se depararem com alguma ideia ou conceito estranho, saberão que aquilo não é necessariamente a opinião final do filósofo, mas apenas uma parte do itinerário de conhecimento que o autor parece estar propondo com seus escritos.

2. Características do estilo de Platão:
Existem dois elementos do estilo platônico que se não forem levados em conta podem levar a mal entendidos sobre sua filosofia. São elas a ironia e o mito.
Tal como vimos quando estudamos Sócrates, a ironia era um dos mais comuns recurso do autor quando realizava seu famoso exame. Naturalmente, sendo discípulo de Sócrates e colocando seu mestre como o personagem principal de muitas de suas obras, Platão também utilizou de maneira metodológica a ironia.
Ironia.jpgCaso você seja uma pessoa muito irónica ou conheça alguém assim, provavelmente já entendeu o problema que isso acarreta pra leitura de Platão. Nem sempre está claro quando o autor está sendo irónico, de maneira que uma leitura desatenta pode acabar passando direto por uma ironia sem entender que se trata disso. Além do mais, tal como já apontamos em Sócrates, devemos ter cuidado para não entender a ironia de Platão como uma forma de niilismo. Quando Platão é irónico não pretende confundir sues leitores, mas apresentar indiretamente aos que são capazes de entender algo que, mesmo se fosse dito diretamente aos incapazes, acabaria sendo nocivamente mal interpretado.
Platão queria suscitar a verdade e não somente a falar. E nesse sentido, a ironia de Platão tem uma função parecida com a maiêutica socrática, quer dizer, levar o indivíduo a descobrir por si mesmo a verdade de algo.

Outro elemento metódico das obras de Platão é o uso de elementos míticos em suas explicações. Pode parece estranho que um filósofo do porte de Platão se utilize de mitos para explicar suas teorias, afinal, a filosofia teria surgido justamente como um afastamento das explicações míticas sobre a realidade e prol da explicação racional. O que acontece é que Platão relaciona mito e razão de uma maneira até então nunca feita, e mais, a própria noção de mito do autor é diferente na noção de mito que havia no momento pré filosófico.

cerebro emotivo.jpgO mito de Platão deixa que a razão o despoje de seus elementos mais fantásticos até o ponte de permanecer somente sua força alusiva e intuitiva, de modo que aparece como uma forma de convencer também as camadas emotivas do sujeito.Em outras palavras, se trata de um falar por imagens que permanece válido na medida em que o ser humano não pensa somente por conceitos.
Além disso, os mitos platônicos costumam aparecer ligados aos temas escatológicos de modo que, mais do que uma expressando fantástica, é como uma expressão de fé ou ainda, segundo a palavra que o autor utiliza no Fedro, élpis (ἐλπίς), que significa esperança. Se pode dizer que grande parte das reflexões escatológicas de Platão aparecem como uma espécie de fé com razões.
[Escatologia é propriamente uma parte da teologia, porem, segundo Abbagano, o termo é muitas vezes utilizado por filósofos para fazerem considerações sobre os estágios finais do mundo ou do homem]
O mito (fé/esperança) busca na razão esclarecimento e a razão busca no mito (fé/esperança) um complemento. Essa fé/esperança que se expressa nos mitos tem então duas funções nas reflexões escatológicas: ou ela eleva o espírito humano a âmbitos superiores que a razão sozinha teria dificuldade de alcançar (ainda que sejam racionalmente acessíveis); ou ela, uma vez que a razão tenha alcançado seus limites, supera esses limites de maneira intuitiva.

A situação, contudo, fica mais complicada quando também identificamos o uso dos mitos em temas distintos da escatologia. Em certos casos, ele significa uma coisa que chamamos de “narração provável”. Para que isso seja bem entendido, vou adiantar algumas informações sobre a gnosiologia (Teoria do Conhecimento) de Platão que em texto posteriores trabalharemos melhor.
Platão concebe que há uma diferença entre conhecer coisas mutáveis e imutáveis, pois supõe uma afinidade estrutural entre as coisas que conhecemos e o conhecimento que temos delas. Isso quer dizer que se o objeto que se pretende conhecer é o ser estável e firme (imutável), então o nosso conhecimento sobre isso também será estável, imutável e fundado sobre a razão, de modo que poderemos captar a verdade pura; de modo contrário, quando o objetos que se pretende conhecer estão sujeito à geração e ao movimento (ou seja, é mutável), o conhecimento que temos disso será no máximo verossímil e fundado sobre o que o autor chama de crença.
Como Platão concebe o universo físico não como algo imutável, mas apenas como uma imagem do Ser puro,  não é possível dele um conhecimento verdadeiro em sentido absoluto, mas somente um conhecimento verossímil. Esse conhecimento verossímil é justamente o mito entendido como narração provável, de maneira que, em certo sentido, toda a cosmologia e a física de Platão será mito provável.

Por último, ainda devemos ter em mente que em determinada passagem do Fedro, Platão afirma que todo discurso sobre temas filosóficos que não siga uma estrutura dialética (grande parte de seus diálogos, por exemplo) também podem ser considerados como uma espécie de mito.

Ao fim, o que deve fica pra nós sobre o uso que Platão faz dos mitos é que em nenhum momento a razão aparece subordinada a eles, mas sim estimulada ou enriquecida pelos mesmo, de modo que, diferente do que passa com a ironia, Platão costuma deixar bem claro o que faz parte de seu discurso racional e o que ele diz em tom mítico.

3- Cronologia dos escritos de Platão
Finalmente vamos tentar propor uma possível cronologia para as obras de Platão, porem tendo em vista que não podemos ter aqui a pretensão de uma palavra absoluta sobre o assunto.
Colocar as obras de Platão em ordem só faz sentido se pensarmos que existe uma “evolução” do pensamento de Platão, ou seja, que Platão teve como que fases em sua atividade como escritor. Isso foi proposto por primeira vez em 1839 por Karl Friedrich Hermann e rapidamente foi acolhida pelos especialistas e, em muitos pontos, confirmada por análises estilísticas, linguísticas e filológicas. Vejamos então quais os critérios pelos quais podemos montar um esquema de cronologia dos diálogos de Platão:
-Testemunhos: basicamente seria seguir o que os antigos disseram sobre as obras de Platão para ter alguma referência. Como exemplo temos Aristoteles que nos indica que Leis foi escrita depois de República. O problema é que também existem informações que não parecem fazer o menor sentido se utilizarmos os demais critérios, de modo que esse critério costuma estar subordinado aos demais.
-Estilo: são particularidades na forma de escrever e nos usos dos termos que vão mudando, normalmente, de maneira inconsciente na obra de um escritor, de maneira que podemos então deduzir que obras fazem parte de um mesmo período da vida de Platão segundo semelhanças estilísticas que têm entre si e que marcam aquele período. Temos por exemplo um certo uso de estilemas (essas particularidades estilísticas) que são tirados das Leis e servem para indicar que obras como Parmenides, Político, Sofista, Teeteto, Filebo, Timeu e Crítias fazem parte desse mesmo período.
referências.jpg-Referências: muitos diálogos fazem referências a pessoas e acontecimentos, de modo que nos permite saber pelo menos que não pode ter sido escritos antes de tais acontecimentos ou antes de Platão ter tido contato com essas pessoas ou com seus pensamentos e feitos. Dai que, por exemplo, sabemos que o Górgias deve ter sido escrito depois de 393 a.C. pelo fato de que fala de um discurso contra Sócrates que um tal Polícrates fez nessa época.
-Relações entre os diálogos: consiste em observar quando um diálogo faz referência ao outro para sabermos qual veio antes e qual veio depois, e mais, se algum pode ser considerado como uma imediata continuação de outro. O melhor exemplo que temos do uso desse critério é o indicativo de que as obras Político, Sofista e Teeteto parecem ser continuação uma da outra, quer dizer, uma sequência.
-Conteúdo dos diálogos: basicamente é ver como o conteúdo filosófico dos diálogos pode ser considerado pertencente a uma época ou outra da vida de Platão, porem não se trata de um critério muito seguro, de modo que sempre é utilizado tendo em vista o que já foi estabelecido pelos demais critérios. Esse é um dos critérios que aponta para o conjunto dos diálogos que dizemos ser do período socrático, afinal, todos costumam girar em torno dos mesmo tipo de problema.
-Construção narrativa: se trata de observar o quanto estão desenvolvidos os aspectos narrativos do diálogo tal como a caracterização dos personagens ou a descrição do cenário; se pensa que os diálogos onde isso é mais abundante são anteriores, enquanto que a medida em que Platão envelhece vai dando mais enfoque ao conteúdo filosófico. Algo interessante é o fato de que o Parmenides é o único diálogo do seu grupo que está numa forma narrativa, enquanto que os demais aparecem em forma direta. Dessa maneira se pode propor que o Parmenides seria o o primeiro de seu grupo.

Baseando-se então nesses métodos, várias propostas foram apresentadas para tentar organizar cronologicamente as obras de Platão. Aqui e apresentará uma junção de esquemas de alguns autores para tentar apresentar, pelo menos superficialmente, uma maneira de pensar a cronologia dos escritos platônicos…

a) Período Socrático: são diálogos em forma dramática que parecem estar entre o ano de 399 a.C. (morte de Sócrates) e 388 a.C. (primeira viagem para Italia). Costumam sempre chegar em aporias, quer dizer, existe uma busca pela solução de determinados problemas sem que nunca se alcança essas soluções, de modo que os interlocutores do personagem Sócrates desistem de continuar a busca.
A problemática costuma girar em torno das questões éticas, de modo que Platão estaria partindo do ponto onde chegou Sócrates. Além disso, parecem ter uma função apologética no que diz respeito a defender a figura de Sócrates, afinal, são escritos posteriores à morte do filósofo onde provavelmente seus discípulos estariam passando por algumas perseguições por parte dos democratas de Atenas.
Aqui estariam os seguintes escritos: Apologia de Sócrates, Críton, Íon, Laques, Lísias, Cármides, Eutífron e Protágoras.
b) Período de Transição: são diálogos que parecem indicar uma passagem da primeira fase à terceira.
Quase todos parecem terem sido escritos antes de 388 a.C. (primeira viagem a Italia), porem o Ménon e o Menexeno podem ter vindo depois.
Entre eles temo: Eutidemo, Hípias Maior, Crátilo, Hípias Menor, Gorgias, Ménon, Menexeno.
c) Período da Maturidade: seria a época central da atividade literária de Platão e normalmente são colocados cronologicamente entre 388 a.C. (primeira viagem a Italia) e 367 a.C. (segunda viagem a Italia).
Segundo Reale, os escritos desse período são tematizações e aprofundamentos surgidos do que chamamos de Segunda Navegação (que nos próximo texto vamos explicar com mais detalhe).
De maneira geral, se costuma dizer que os escritos que dessa fase são: Banquete, Fédon, República e Fédro.
d) Período da Velhice: é o último período da atividade literária de Platão que parecem ter sido escritos depois de 367 a.C. (segunda viagem a Italia).
Aqui temos que um grande diálogo de Platão com o eleatismo, posteriormente o pitagorismo. Em alguns diálogos Sócrates perderá sua posição de protagonista para o “Estrangeiro de Eleia” ou para o pitagórico Timeu. Ademais, muitos autores costumam indicar essa fase do pensamento de Platão como um momento de crises, superações, autocríticas e correções no que diz respeito a sua Teoria das Ideias (quem também veremos mais a fundo no prótimo texto).
Os escritos que são ditos pertencentes a essa fase são: Parmenides, Político, Sofista, Teeteto, Filebo, Timeu, Crítias e Leis.

Temos ainda a Carta VII e a Carta VIII que, devido ao conteúdo que possuem, devem ter sido escritas depois de 353 a.C. (morte de Díon).

Ao fim, o importante é que não perdemos de vista que, ainda que seja um assunto interessante, saber a ordem em que Platão escreveu suas obras não é nossa prioridade, afinal, tal como vimos, aquilo que é o pensador Platão está muito além do Platão escritor.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-ABBAGANO, Nicolas. Historia de la Filosofia. Barcelona: Presença.
-FRAILE, Guilhermo. História de la Filosofia-Grecia y Roma. Madrid: Ed. BAC, 1976.
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

Platão – Teoria Política I

“Quando antigamente se falava de Platão, nem sempre se realçou a importância da componente política de seu pensamento, de modo que muitas vezes o autor era entendido como alguém que, pelo menos filosoficamente, não se preocupava com esse assunto.
No século XX, contudo, o estudo sobre seu pensamento político recebeu um novo fôlego, e isso veremos agora…
1. Ideias gerais sobre a Filosofia Política de Platão
6050864-M.jpg-Em primeiro lugar temos a afirmação sobre a autenticidade da Carta VII que diz que a política foi uma das grandes paixões da vida do autor;
-mais tarde isso é reafirmado em uma biografia de autoria de Wilamowitz-Moellendorff (não tentem pronunciar isso em casa);
-por último, está todo o trabalho de Jaeger em afirmar que essa paixão não se tratava simplesmente de uma característica de Platão enquanto cidadão comum, mas também enquanto filósofo, de modo que se pode afirmar a política como a substância da filosofia platônica.
O próprio Platão afirma que desde jovem se sentia atraído à política, algo que é bastante natural se pensarmos no contexto familiar no qual estava metido: nascimento nobre e tradição familiar de estar nos negócios públicos (sem contar ainda uma possível vocação que o autor parece demostrar para esse tipo de vida).
Apesar disso, no mesmo texto vemos Platão explicando que afastou de sua vida a possibilidade de ser político por conta da corrupção que encontrou tanto nos homens de governo quanto nas leis e costumes da cidade. Ante tudo isso sua conclusão foi que somente a filosofia seria capaz de produzir uma política justa, de modo que os dirigentes das cidades deveriam ser homens inflamados pelo amor à sabedoria, ou seja, deveriam converter-se antes em filósofos.
Mais tarde, quando já tinha mais ou menos 40 anos, Platão vai até a Italia e escreve um de seus celebres diálogos, o Gorgias. Nele podemos encontrar a proclamação de uma nova concepção de política.
Para o filósofo, a política deve estar em função do bem dos cidadãos, isto é, do homens. O que acontece é que Platão foi discípulo de Sócrates, de modo que quando fala de “homem” pensa sobretudo na alma, de modo que a verdadeira política é aquela que busca cuidar das almas enquanto que a falsa apenas quer o cuidado do corpo (necessidades materiais). Como a filosofia é a única a qual se pode realmente confiar o cuidado das almas, é ela que deve ser o grande o grande critério para fazer política. Isso, contudo, estava muito longe da realidade, pois a disciplina que imperava entre os políticos da época era a já conhecida retórica.
Se pode dizer que Platão parece entender política e filosofia como a mesma coisa, ainda que sob distintos pontos de vista (isso ficará ainda mais claro ao entrarmos na proposta política que Platão apresenta em sua República). Com isso podemos afirmar com Jaeger que um só é o Platão político e filósofo.

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Ademais de entender a política como “cuidado das almas”, existem algumas outras características da filosofia política de Platão que são importantes destacar: em primeiro lugar está a tendência do autor em (1) identificar cidadão e indivíduo. Isso significa que para Platão não existe individualidade independente da polis, de modo que ela a (2) polis é o horizonte absoluto da vida do homem, o lugar onde cada um está chamado a se realizar. Nesse sentido se pode dizer que na medida em que o sujeito se realiza como cidadão, também estará se realizando como indivíduo. A consequência é que (3) o Estado (ou suas Leis) acabam sendo entendidos como os paradigmas da vida boa, de modo que se entende a importância que logo veremos que Platão da para a formação das leis de uma polis.
Hoje em dia estas ideias estariam passíveis de muitas críticas, pois nossa concepção atual entende que, ainda que façamos parte de uma sociedade, somos indivíduos dotados de uma interioridade que não tem nada que ver com o Estado, que se referem apenas a nossa livre consciência. Para o homem de hoje em dia (pelo menos para o homem geral) é absurdo pensar o Estado possa ser a fonte de todas as normas que regulam nossas vidas, mas somente daquelas que dizem respeito a nossa atuação na sociedade.
[Obviamente existem excessões, pois a situação política atual está tão confusa que muitos poderiam acabar criticando Platão de um autoritarismo não muito diferente daquilo que eles mesmos defendem, mas enfim…
Em realidade, a discussão sobre o “autoritarismo” politico de Platão é demasiado pueril e é melhor deixarmos isso para o FaceBook.]
Tais ideias (bem como as críticas que poderíamos fazer a elas) são, contudo, algo secundario nesse estudo. Pois o mais importante será entender de que maneira a firmação de que a grande função da política era cuidar da alma dos cidadãos e não somente de sua dimensão material. Isso é importante uma vez que hoje em dia parece que se optou justo pelo contrario, pois cada vez se ve uma política menos interessada no bem integral dos homens. O grande esforço das campanhas políticas parecem estar justamente em promessas de desenvolvimento económico e bem estar social.
Muitos que estamos melhor hoje que antigamente, pois grande é o conforto e muitos os bens alcançados pelos desenvolvimentos tecnológicos dos últimos decenios. Apesar disso, o fato é que eu não conheço outra época da história da humanidade (até porque não é minha área) que tenha produzido tanta gente infeliz e cheia de uma insatisfação letárgica como a que vivemos hoje…
2. As perspectivas de Leitura da Filosofia Política de Platão.
Uma vez que já introduzimos algo sobre as noções políticas do autor, podemos ver um pouco de sua grande obra sobre o tema, a saber, a República.
Antes, contudo, de entrarmos propriamente no seu pensamento, devemos estabelecer a perspectiva segundo a qual iremos explicar as teorias presentes nessa obra.
Em primeiro lugar devemos estabelecer a relação que existe no pensamento de Platão entre ética/moral e política.
Para o autor, não hem verdadeira distinção entre as duas, porem, até metade do século XX, muitos defenderão o contrario (ainda que aceitem verbalmente que são distintas) ao afirmarem que a República não é uma obra política, mas somente ética/moral. Alfred Edward Taylor afirma que na República o que encontramos não é a busca pelo governo da cidade, mas a pergunta sobre o modo do homem ser digno ou não da salvação eterna. O autor sustenta essa tese afirmando que a obra começa e termina com um viés escatológico, pois no seu início temos um ancião refletindo sobre a proximidade da morte e no final nos é apresentado um mito sobre o juízo final. Sua conclusão é que a política nada mais é do que a educação e as instituições que permitem ao homem chegar a seu destino final, de modo que ela está todo fundada sobre a ética que, por sua vez, não depende em nada da política.
Ante essas afirmações, Reale comenta que o próprio A. E. Taylor afirmará em outro ponto de seu estudo que ninguém pode viver somente em si e para si, de modo que o filósofo somente será justo e digno da salvação eterna quando se converter num rei-filósofo para então obter essa salvação para sua cidade. Isso quer dizer que o próprio Edward Taylor aceita que, para Platão, o homem somente pode explicar-se moralmente na medida em que se explica politicamente. Além do mais, se torna algo ainda mais patente quando se recorda que, dentro da filosofia de Platão, não há distinção entre indivíduo (nivel ética) e cidadão (nivel político). Parece correto afirmar que, dentro da mentalidade platônica, a República poderia ser uma obra ética na medida em que fosse também uma obra política.
Outra perspectiva equivocada sobre a obra de Platão é a chamada visão “politizante” que nada mais é do que a compreensão da política platônica segundo algumas visões modernas, ou seja, uma especie de anacronismo típico da situação do homem de hoje em dia que está cada vez mais centrado em si. Uma de suas manifestações mais comuns é ler a República de Platão identificando seu como uma versão mais antiga e menos refinada do Comunismo/Socialismo. Apesar de realmente podermos observar alguns pontos em comum, parece que são semelhanças apenas acidentais, afinal, teoricamente são fundamentalmente distintos (a começar pelo materialismo absoluto que faria Platão vomitar).

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Além disso, houve também a tentativa de estabelecer relações entre o pensamento político do autor e o nazismo…
[Muito antes da briga sobre o nazismo ser de esquerda ou direita já estavam falando que era coisa de Platão]
…de modo que nesse clima vemos uma obra de Karl Popper que acusa o pensamento de Platão de conservador, reacionário e totalitário uma vez que negaria as liberdades individuais.
Aqui nese blog iremos rejeitar tanto uma quanto outra perspectiva e, ao invés delas, seguiremos o que diz Jaeger e Reale, a saber, que o Estado platônico que nos apresenta a República nada mais é do que uma imagem aumentada do homem, de modo que formar o verdadeiro Estado é formar o verdadeiro homem. Para então justificar esse ponto de vista, creio que o melhor é recorrer justamente pelo contexto no qual o próprio Platão coloca Sócrates (o personagem principal desse diálogo) pouco antes de começar sua explicação.
No início da obra vemos um diálogo entre Sócrates um um sofista chamado Trasímaco no qual entram dos jovens chamados Glaucon e Adimanton. Até a chegada dos dois jovens estava Sócrates defendendo que o homem deveria agir de forma justa  a partir da tradicional idea sobre a beleza e a bondade da justiça. O problema se dá quando um dos argumentos dos jovens faz Sócrates perceber que o conhecimento tradicional já não era suficiente para convencer aos homens de seu tempo a agir justamente.
[Creio que falamos algo sobre isso nesse texto no qual explicamos um pouco sobre o método socrático]
Basicamente, diziam que a justiça não correspondia a uma verdade interior do homem, mas somente a uma questão de utilidade exterior, ou seja, que se tratava apenas de uma convenção. Para afirmar a necessidade da justiça, Sócrates proporá investigar o que é propriamente a justiça e qual o seu valor para o indivíduo/cidadão e, para isso, se perguntará onde se encontra a justiça no homem. O problema é que a realidade humana é demasiado pequena para ser investigada tão pormenorizadamente, de modo que o autor propõe que se olhe para a polis como uma “imagem aumentada” do ser humano. Sendo assim, diz que deveriam tentar construir uma polis ideal (que é imagem do homem ideal) de maneira que uma vez que a justiça aparecesse nele como algo necessário, consequentemente também seria encontrada no indivíduo/cidadão.
3. A construção da Cidade Ideal
Antes de entrarmos de modo mais pormenorizado na descrição que Sócrates faz na República de sua cidade, devemos ter sempre em mente que se trata de uma cidade ideal (feita no logos), um “modelo perfeito” no qual se pode alcançar de modo mais perfeito a produção de boas almas.
Começa justificando o surgimento de um Estado pelo principio que nenhum de nós é verdadeiramente autárquico, ou seja, ninguém basta a si mesmo para viver. Um ser humano comum possui uma série de necessidades como alimentação, moradia, vestimentas etc. O problema é que para somente uma pessoa prover tudo isso, mesmo que somente para si mesmo, é extremamente difícil por dois motivos:ABITT_160509-50
-uma pessoa normal (e aqui estamos excluindo o Rodrigo Hilbert) não consegue caçar, cozinhar, construir uma casa, tecer roupas, entre outros, tudo ao mesmo tempo.
-existem diferentes aptidões para diferentes pessoas, de modo que um grande caçador pode ser um total fracasso como carpinteiro ou como costureiro.
Sendo assim, indivíduos humanos se juntam e se organizam para que cada um se especialize em uma dessas atividades e as provenha para todos os demais. Esse seria então o surgimento das profissões.
Elas, por sua vez, serão englobadas pelo autor em três classes distintas: profissões de paz ou artesãos (satisfazem as necessidades da vida); guardiões ou guerreiros (defendem a cidade); dirigentes que devem ser escolhidos dentre os guardiões/guerreiros (aqueles que dirigem o Estado, ou seja, aquilo que hoje chamamos de políticos).
Para essa distinção de classes o filósofo fala de três tipos de almas diferentes: de ouro (dirigentes), de prata (guardiões) e de bronze (artesãos).
Des de logo se percebe que Platão não é politicamente correto ao afirmar que as pessoas desde o momento que nascem já são diferentes e limitadas a realizar determinada função. Apesar disso, diferente do que dizem alguns, não existe aqui propriamente a proposta de uma sociedade de castas.

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Em primeiro lugar pelo fato de que essas funções não são hereditárias, ou seja, a ascendência do indivíduo não determinada seu lugar na cidade.
Além disso, não basta nascer com um alma de ouro para tornar-se dirigente da cidade, mas faz falta receber o que o autor chama de “educação”.
O autor defende que todo indivíduo possui uma dynamis (δυναμις), quer dizer, uma capacidade. Ela deve ser um composto de sua natureza (ouro, prata ou bronze) com a educação que recebe.
[Um exemplo muito legal dessa sociedade de classes é um livro que recentemente virou filme chamado “O Doador de Memórias”, obra essa que eu particularmente acho muito mais ilustrativo que “Divergente” e companhia]
Em realidade, a qualidade de uma alma ou natureza não pode ser medida, mas apenas manifestada segundo a maneira pela qual cada um responde à educação recebida. Não é que se descubra a profissão por conhecer a alma, mas se conhece a alma uma vez que se assume definitivamente determinado ofício na vida da cidade.
Seguindo a construção da cidade ideal, logo acontece algo muito interessante durante a fala de Sócrates. Ao princípio, o autor propõe que não se permita nenhum tipo de luxo dentro da cidade, pois sendo uma construção ideal tudo aquilo que não seria estritamente necessário para a vida e a alma não precisaria ser cultivado. O que acontece é que seus interlocutores começam a reclamar dizendo que isso seria contra o costume, ou seja, seria tirar das pessoas (especificamente do homem grego da época) o que elas estavam acostumadas. Assim, o autor concede a entrada irrestrita de todos os tipos de luxo.
Uma vez então que os luxos são permitidos, Sócrates diz que os cidadãos dessa cidade precisarão de uma educação especial para não se deixarem levar pelos prazeres, pois isso acabaria destruindo a própria cidade. Essa educação especial se tratará de algo que pretende a formação moral e atlética dos que futuramente serão guardiões/guerreiros (ou seja, num primeiro momento será dada a todos). Busca fazer deles homens capazes de apreciar de maneira reta todas as coisas. Para entender como deve ser essa educação e os fins que se buscam alcançar mediante ela faz falta entender como devem ser aqueles que receberão a função de guardiões.
Quando descreve um guardião, Platão diz que eles devem ser como cães de boa raça: manso com os de casa e ousados ente os inimigos. Fisicamente eles devem ser fortes e ágeis uma vez que são guerreiros; quanto ao seu estado de alma faz falta que sejam ao mesmo tempo corajosos, irascíveis e amantes do saber. Seu processo educativo se dá então em duas etapas: a musiké ou educação cultural e a ginastiké ou educação física.
Na educação cultural está a questão da poesia (conteúdo) e da música (forma), e isso terá que ser profundamente purificado. No que diz respeito à poesia, é preciso cuidar para não expor aos jovens a qualquer coisa que seja imoral ou falsa (roubo, mentira, cobiça, traição etc.), em especial no que diz respeito aos contos sobre os deuses uma vez que seriam seres exemplares. Já na música é necessário que se elimine todas aquelas melodias caídas e deprimentes e somente se apresentem as que podem produzir nas almas dos guardiões a verdadeira virtude da coragem (logo veremos o porquê). A educação física por sua vez deve sempre evitar os excessos (dieta) e fortalecer o corpo.
Ao fim, temos um primeiro âmbito educativo que visa formar e robustecer a parte racional da alma e um segundo que pretender fortalecer a parte irascível.
[Partes da alma?]
bigaNo próximo texto falaremos um pouco sobre esse tema, porem creio que é bom pelo menos introduzir algo uma vez que já estamos utilizando essa divisão.
Para Platão, a alma humana possui três partes ou dimensões: apetecível (que tem por característica o desejar), irascível (que tem mais ou menos por característica o inflamar-se/irar-se) e racional (que tem como característica o pensar).
Até agora vimos, por exemplo, que os guardiões devem fortalecer a parte irascível e a parte racional da alma, porem também podemos inferir que, por conta da entrada das coisas luxuosas na cidade, a parte apetecível deve ser controlada. Ao fim, a boa alma é aquele onde a razão é capaz de guiar e presidir sobre as outras duas.
[Enfim…]
Ainda que todos os cidadãos recebem essa educação, existe um tipo de teste (sobre os prazeres e temores) que busca separar aqueles que serão guardiões do que serão artesãos. Esse teste pretende descobrir se o sujeito tem ou não a capacidade de nunca (em hipótese nenhuma) desviar-se do correto mesmo ante os mínimos prazeres ou medos. Aqueles que não passam no teste não poderão então ser guardiões, algo que não significa que sejam maus, mas apenas que não possuem a capacidade (natureza + educação) para serem bons guardiões. Provavelmente serão ótimos artesãos com um caráter verdadeiramente bom e com uma natureza verdadeiramente boa, porem sem aquela constância perfeitíssima nos mínimos detalhes que deve ter aquele que exerce a função de guardião. Os guardiões terão então as seguintes funções:
-evitar demasiada pobreza ou riqueza entre os artesãos (eles mesmo por sua vez não terão nenhuma posse e viverão tendo tudo em comum e previsto pelos demais como forma de pagamento);
-evitar que o Estado se torne demasiado grande ou pequeno;
-evitar mudanças nas leis sobre a educação ou o reordenamento do Estado;
-assegurar a correspondência entre a índole do indivíduo (natureza/alma) e a função que ele exerce.
Em resumo se pode dizer que seu trabalho é o de impedir mudanças que venham a arruinar aquele Estado ideal. Cabe ainda dizer que nesse quesito não há para Platão distinção entre os sexos, de modo que tanto homens quanto mulheres devem receber a mesma educação e a mesma funções segundo o resultado dessa educação (em realidade, a única distinção que o autor faz é no que diz respeito aos trabalhos mais pesados, pois considera o menor vigor físico da mulher em relação ao homem).
Uma vez então delimitado o que é um guardião/guerreiro, faz falta saber quem vai governar a cidade, ou seja, quem serão os dirigentes. Serão elegidos entre os guardiões e o critério será o amor que tenham mostrado pela cidade e o zelo com que levaram a cabo seu trabalho.
Arquimedes (3)Como já vimos anteriormente, para Platão o bom estado deve ser governado pelos filósofos, pois somente eles podem realizar o Estado perfeito em meio aos homens. De fato, o filósofo é aquele que foi capaz de sair da multiplicidade do Sensível e contemplar a unidade do Inteligível. Uma vez tendo contemplado o Uno, o filósofo é capaz de plasmar-se e conformar-se de sua unidade e ordem (sempre segundo os limites humanos) e, posteriormente, fazer o mesmo com o Estado. Em outras palavras,  o filósofo é aquele que utiliza a Forma de Bem (o Uno) como um paradigma para si mesmo e para a sua cidade. Temos então que o Bem não aparece no filosofia de Platão apenas como um fundamento ontológico (ser das coisas) e gnosiológico (conhecimento das coisas), mas também político, pois a polis se constrói tendo como referência o Uno que somente o filósofo é capaz de contemplar. Disso se supõe que a filosofia possuirá um importante lugar no processo educativo dentro da cidade de Platão, de modo que para isso que iremos olhar um pouco agora.
A primeira coisa que se busca são aqueles jovens dotados de uma “alma de ouro”, ou seja, de uma natureza autenticamente filosófica na qual a parte racional da alma sempre é capaz de dominar sobre as outras duas. Para estes, a educação que os demais cidadãos recebiam (física e cultural) não passa de uma preparação, pois mesmo que seja capaz de tornar o sujeito harmônico não permite levar ao conhecimento a Forma de Bem. O conteúdo desse caminho rumo ao Bem é o que já estudamos como a Segunda Navegação Platônica: passa por noções de matemática, astronomia, música e, finalmente, dialética. O processo é bastante interessante…
Em primeiro lugar temos a matemática que deve ser ensinada desde a mais tenra idade, mas não de maneira convencional, mas por meio de jogos e brincadeiras.
Serio que Platão falou isso?
Sim…
o.O
O que acontece aqui é que Platão acredita que o homem livre não deve aprender nenhum tipo de ciência a modo de escravo, de maneira que os pequenos não podem encontrar nenhum tipo de violência em seu estudo. Esses estudos vão se desenvolvendo até que, aos 20 anos, o sujeito começa a aprender as relações que existem entre as disciplinas do ciclo anterior e a natureza do ser. Isso vai então durar até os 30 anos e nesse período se deve descobrir quais os jovens que são dotados de natureza dialética (alma de ouro) e o critério para esse discernimento será a capacidade de ver as coisas em seu conjunto, ou seja, a já comentada synopsis. Os que então provarem ser de natureza filosófica serão educados durante mais 5 anos na dialética e, chegando aos 35, terão que voltar ao mundo das coisas empíricas para assumir alguns cargos na cidade. Por fim, passando mais 15 anos, chega ao fim o processo educativo dos governantes e eles são levados à contemplação filosófica do Bem. Tal contemplação, por melhor que seja, não poderá ser muito longa, pois agora é seu dever voltar seus olhos para a cidade e realizar o processo educativo em outros indivíduos bem como cuidar das questões políticas. Tal como aconteceu com os guardiões, aqui não existe nenhum distinção entre os sexos, de modo que tanto mulheres quanto homens podem ser governantes da cidade, bastando apenas que sejam verdadeiramente dialéticos.
É muito interessante que Patão não queira permitir que os filósofos fiquem eternamente na contemplação do Inteligível, pois mesmo que isso seja a verdadeira felicidade, o fato é que não podemos apenas uma classe dentro da cidade ser feliz. O trabalho do filósofo é então fazer com que as demais classes possam receber também parte dessa felicidade segundo suas próprias capacidades. Nesse sentido, é muito bonito o comentário de Reale segundo o qual o máximo poder político dentro do pensamento de Platão é o grande e necessário serviço daquele que, por meio da prática política, distribui o Bem a todo a cidade. Aqui creio que fica bastante claro a relação intima que existe no pensamento do autor entre o exercício da política e da filosofia.
Virtues_Cardinal_Virtues_01_670x401.jpgUm vez então que temos o Estado ideal, devemos buscar onde está a justiça, afinal, desde o começo essa era a intenção do autor.
Em primeiro lugar devemos ter em conta que a justiça é uma virtude (hábito bom) que faz parte de um grupo de virtudes que hoje em dia chamamos de virtudes cardeais, a saber: Temperança, Coragem, Prudência e Justiça.
Elas são assim chamadas pela importância que costumam ter dentro das teorias das virtudes e pelo fato de serem princípios de muitas outras.
Sendo elas as 4 virtudes fundamentais, devem estar todas presentes no Estado pra que então ele possa se chamar perfeito.
Prudência ou embolia (εὐβουλία): literalmente significa “bom conselho”, mas no contexto do Estado ideal deve ser entendida como uma ciência (episteme) que aponta à melhor maneira do Estado comportar-se em relação a si mesmo e aos demais Estados.
Como a sabedoria do Estado depende da sabedoria de seus dirigentes, podemos dizer que é na primeira classe que de maneira especial encontraremos a virtude da prudência.
Fortaleza/Coragem ou andréia (Ἀνδρεας): antes de entrar propriamente na definição do autor sobre essa virtude, é importante ter em mente que ela já foi tema de um outro diálogo chamado Laques. Nesse diálogo são apresentadas à Sócrates um serie de definições de Fortaleza/Coragem que o autor vai rejeitando.
O interessante, contudo, é que aquilo que ele apresentará na República como definição de Fortaleza/Coragem parece ser como uma junção do daquelas definições que no Laques foram consideradas impróprias.
Creio que isso é mais um argumento para sustentar a tese jia apresentada nesse blog de que o método socrático não consistia tanto em apresentar uma definição bonita, mas simplesmente em saber colocar seu fundamento racional, mas enfim…
Aqui na República, a Fortaleza/Coragem é dita como a capacidade de conservar a opinião reta com constância em matérias perigosas e não se deixar vencer por prazeres, dores, medos ou paixões.
De certa maneira, estamos praticamente diante de uma descrição do bom guardião/guerreiro, de modo que podemos dizer que é nessa classe que devemos encontrar a Fortaleza/Coragem uma vez que a força de uma cidade se mede pela força de seus guardiões.
Temperança ou sophrosúne (σωφροσύνη) : isso é o que podemos chamar também de ekrateia, ou seja, o domínio ou disciplina dos prazeres e desejos.
Em outras palavras, é a capacidade de submeter a pior parte à melhor, quer dizer, permitir que esta domine e conduza aquela.
Ainda que seja importante estar presente em toda a cidade, parece algo mais próprio da classe dos artesãos que são justamente aqueles que se devem deixar conduzir e proteger pelas demais classes.
No Estado temperante, os mais “fracos” estão em harmonia com os mais “fortes”, de modo que não seja necessário uma constante imposição ou o uso de violência para isso.
A Justiça ou dikaiosúne (δῐκαιοσῠ́νη): aqui temos o principio segundo o qual se constrói o Estado, pois é a capacidade de cada um fazer somente aquilo que lhe é devido segundo sua natureza.
Com isso, Sócrates mostra que a justiça é algo intrínseco ao funcionamento de uma boa cidade, pois ela é o que garante que cada parte realize sua função.
Se então aplicamos isso ao homem, podemos dizer que a justiça não é algo extrínseco ao sujeito, fruto apenas de uma convenção social, mas o princípio segundo o qual cada parte da alma realiza sua função sem se meter nas funções das demais.
O homem injusto é então um ser desordenado e fadado à infelicidade.
Isso ficará mais claro na segunda parte do nosso resumo sobre a Filosofia Política de Platão, por hora basta finalizarmos com a ideia de que o autor propõe uma espécie de governo aristocrático onde a cidade é dirigida pelo “melhor” (ou “aristós”) que não será o mais rico ou poderoso, mas aquele que de maneira mais perfeita vive a virtude segundo o sentido socrático, quer dizer, como verdadeira sabedoria.
Aqui vemos uma espécie de nexo entre a virtude e a felicidade, porem isso podemos tratar com mais tranquilidade quando falarmos de sua antropologia.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-MOTTA, Guilherme Domingues da. Glaucón, Admanto e a Necessidade da Filosofia. Kléos, Rio de Janeiro, n. 9/10, p. 87-112, 2005
-REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. I, 1993

Platão – Teoria do Conhecimento

“Hoje falaremos de um dos temas mais interessantes do pensamento Platão, sua teoria do conhecimento.
Nesse post veremos uma das mais conhecidas doutrinas do autor, a Teoria da Reminiscência ou Anamnese.
De entrada, o contexto para falar desse tema parecem ser as críticas feitas ao  exame socrático (para saber que é esse exame, basta ler esse post).
Nossa maior dificuldade talvez seja o fato de que, como a maior parte dos temas platônicos, não existe uma exposição ordenada sobre o assunto, pois vai apresentando sua teoria do conhecimento ao longo de várias de suas obras.
Para então facilitar nossa vida, vamos olhar apenas para três obras em concreto: o Mênon, o Fédon e a República.
Nos dois primeiros veremos a Teoria de Reminiscência em algo como dois versões distintas e no último nos centraremos na chamada dialética platônica.
Vamos começar…

Mênon, um dos diálogo de Platão que não sabemos exatamente se foi escrito antes ou depois de sua primeira viagem à Italia (na qual conhece os pitagoricos), vemos algo bastante incomum em relação ao demais diálogos que pensamos ser mais ou menos da mesma época.
Sócrates aparecerá debatendo não sobre um virtude em particular, mas sobre a própria noção de virtude.
Seu adversário, que dá o nome ao diálogo, é discípulo de Gorgias, um dos grandes sofistas da época.
Como vocês devem lembrar (caso não lembrem a podem ver aqui), Gorgias argumentava basicamente o seguinte:
-Nada é;
-Mesmo que algo fosse, os homens não seriam capazes de compreender;
-Mesmo que algo fosse compreensível, não poderia ser expresso ou comunicado a outrem.
Em resumo, ele inviabilizava totalmente a possibilidade de um conhecimento objetivamente verdadeiro.
Tal tendência, ainda que de forma um pouco mais branda, aparecerá no discurso de seu discípulo.
Na primeira parte do diálogo, Sócrates e Mênon discutem sobre a possibilidade da virtude ser ensinada.
Ménon, tentando defender que é impossível ensinar a virtude, tem todos seus argumentos refutados e é levado a cair em aporia.
SocratesEm esse momento, ele insulta a Sócrates o comprando com um tipo de animal que possui um poderosos veneno que era capaz de paralisar suas vítimas (além disso, também pretendia dizer que Sócrates tinha a cara achatada e feia, o que não deixa de ser verdade).
Diz que discutir com ele é um grande perda de tempo uma vez que a única coisa que Sócrates faz é levar a todos que se aproximam dele à aporia, quer dizer, paralisa seus discursos tal como faz a raia com suas vítimas.
O filósofo, por sua vez, responde simplesmente que as aporias não são o fim que busca em sua investigação, mas somente um indicador de que é necessário começar um nova busca pela verdade.
Em outras palavras, chegar num beco sem saída durante um investigação filosófica significa apenas que é preciso voltar alguns passos para descobrir onde se pode haver equivocado para então tomar outro caminho.
Sendo assim, Sócrates o convida para retomar a discussão e descobrir maneiras de superar a aporia.
Mênon, talvez por não querer seguir com a investigação socrática (que de fato não era para qualquer um), tenta escapar com o que chamaríamos de um argumento erístico…
[Erístico vem de erística, algo como a “arte de vencer discussões”]
…dando a entender que é inútil seguir buscando conhecer o que é a virtude, pois ao fim não se chegaria a lugar nenhum (e aqui começamos a ver a influência de Gorgias sobre a impossibilidade de um conhecimento verdadeiro sobre algo).
Seu argumento é mais ou menos assim:
-buscar conhecer o que já se conhece é inútil, pois uma vez que já conhecemos não há porque buscar.
-buscar conhecer o que se ignora é inútil, pois uma vez que não conhecemos a coisa, caso a encontremos, não seremos capazes de reconhecer e será como se não a tivéssemos encontrado.
Em poucas palavras, se trata de uma crítica ao método socrático de investigação que está supondo que, mesmo existindo a verdade, não há um critério pelo qual a possamos reconhecer (e isso podemos entender como um desdobramento do segundo ponto da argumentação de Górgias: “mesmo que algo fosse, os homens não seria capazes de compreender).

XiforimpolaPara entender isso, imagine se eu peço que você entre num quarto e me traga uma “xiforimpola”. Caso você não saiba que raios é isso, pode ter uma bem na sua frente que ainda assim você não será capaz de identificá-la. Dessa forma, duas coisas podem acontecer: ou você ficará lá para sempre tentando descobrir qual dos objetos do quarto é a “xiforimpola”; ou pensará que ela é algum dos outros objetos e trará a coisa errada.
No caso da investigação socrática, algo análogo ocorreria: ou você entra num processo infinito de investigação (teses e críticas) sem nunca alcançar a verdade desejada; ou chega a uma tese que ninguém e capaz de criticar e, mesmo que não seja verdadeira, acabar sendo tida como tal sem o ser.
No fim das contas, o desafio que Sócrates deverá superar é justamente o de apresentar ao seu adversário um critério que permita o reconhecimento da verdade uma vez alcançada.
Isso será o que tradicionalmente chamamos de Teoria da Reminiscência ou anamnese.
Vejamos como como o autor desenvolve isso…

Sendo Mênon um tipo de homem bastante impressionável, Sócrates começa sua resposta dizendo que havia escutado “sábios em coisas divinas” falando de algo que teria que ver com o tema.
De certa maneira, o que o filósofo está fazendo é utilizar um argumento de autoridade.
Apesar disso, tal insinuação é o suficiente para atiçar a curiosidade de Mênon e ele rapidamente demostra interesse em saber que haviam dito os “sábios em coisas divinas”.
Sócrates então diz que sacerdotes e sacerdotisas, poetas e sábios, anunciavam que alma era imortal e que, quando o corpo morria, encarnava (transmigrava) em outro ser.
A partir desse dado, da transmigração das almas, o filósofo segue…

Kuririn.jpgUma alma que já se encarnou muitas vezes, necessariamente já teve a oportunidade de ver de quase tudo nesse mundo.
O problema é que mediante a encarnação, quer dizer, a união com um corpo, ela acaba esquecendo aquilo que havia conhecido.
Isso não quer dizer que ela deixou de saber, mas apenas que o conhecimento está como que dormido dentro dela.
Baseado nisso, Sócrates diz que aprender ou conhecer não é mais do que o ato da alma de recordar-se daquilo que ela já conhecia, mas que havia esquecido.
Nessa linha, o exame socrático é apresentado como o melhor dos métodos para ajudar a alma a lembrar dessas verdades que já possui dentro de si.
Poderíamos dizer que, quando o homem se depara com uma tese verdadeira, seria como se uma lâmpada fosse acendida em sua alma de modo que ela percebe imediatamente que aquilo que tem ante seus sentidos está de acordo com o conhecimento que desde sempre possuía em si mesma.
Sendo assim, ante a verdade, o critério que permite o sujeito reconhecê-la é justamente a anamnese, quer dizer, a intuição da alma ante a verdade que já possui.

De fato, a resposta não parece muito satisfatória, pois aqui caberia a pergunta sobre o que seria então essa “intuição da alma”.
Isso não é, contudo, um problema, pois como já dissemos antes, o pensamento de Platão nunca aparece tal e qual sistematizado em um obra, mas sendo sempre apresentado e reapresentado ao longo de toda sua atividade literária (sem contar a questão das doutrinas não escritas).
Ao fim, parece que o ponto que o autor quer atingir no Mênon é o de que o exame socrático não é um busca inútil ou infindável, mas algo ao qual vale a pena submeter-se uma vez que se bem conduzido é capaz de chegar à reminiscência.
Sócrates então provará sua tese propondo um diálogo com um dos escravos de Mênon para tentar extrair dele algumas verdades geométricas a partir de uns simples princípios matemáticos.
Se trata de uma experiência bastante interessante que creio que vale a pena ser lida diretamente na obra do autor.

Reencarnación.jpgPor conta dessa teoria, alguns vão entender que Platão está fundamentando racionalmente a reencarnação ou que, pelo menos, ele mesmo é reencarnacionista.
Tal ideia, ainda que não seja impossível, parece improvável, pois em nenhuma parte da obra podemos ver Platão argumentando sobre isso, mas sim partindo da transmigração das almas (que pode ser entendida como reencarnação) como uma doutrina ensinada por homens e mulheres “sábios em coisas divinas”.
Como já vimos antes, é muito comum dentro de sua atividade literária o uso da linguagem mítica para transmitir um conhecimento que seus interlocutores talvez não fossem capaz de captar somente no plano intelectual.
Tanto é assim, que um pouco depois o autor vai buscar fundamentar a anamnese no processo dialético feito ao escravo, ou seja, sem apelar à linguagem mítica.
Ademais, o próprio Sócrates ao fim desse discurso explica que o que lhe importava em todo esse argumento era mostrar a validade de seu método, de modo que “sobre outros ponto da argumentação” (talvez justamente o mito apresentado), diz que não possui muita convicção.
Claro que, como já foi dito, pensar em Platão como um reencarnacionista que defende tal postura filosoficamente não é impossível, porem, no seguinte diálogo em que a doutrina da reminiscência aparece, já não se fala de reencarnação, mas somente de preexistência das almas.
Se trata do Fédon

Esse diálogo já apareceu quando tratamos sobre a Metafísica platônica.
Se passa durante os últimos minutos de vidas de Sócrates quando seus discípulos vão estar com ele.
Para os consolar, o filósofo começa a falar sobre a alma e sua situação depois da morte.
É um texto muito bonito onde se percebe o tipo de sujeito que Sócrates era.
Desenvolveremos um pouco essa questão das almas quando passarmos pela psicologia platônica, porem, deixo desde já a sugestão de leitura.
No que diz respeito a Teoria da Reminiscência, temos que ela aparece em um dos argumentos que Sócrates utiliza para demonstrar a imortalidade da alma.
Enquanto Sócrates falava sobre o tema, um de seus discípulos chamado Cebes se lembra de que ele costumava falar em diversas ocasiões que conhecer não era nada mais que recordar-se de algo que se havia esquecido.
Essa é mais ou menos a deixa para que Sócrates comece a explicar a anamnese.
Tentaremos reproduzir o argumento de maneira um pouco mais simples que na obra original…

Parece que alguns ds conhecimentos que temos não são exatamente conformes os dados que recebemos dos sentidos.
Se olhamos para uma bola de futebol, imediatamente percebemos que ela é bastante parecida com o que em geometria chamamos de esfera.
Ainda que muitos outros objetos sensíveis possam ser comparadas com uma esfera (laranja, globo etc.), nenhum deles pode ser chamado estritamente de esfera tal como essa noção é explicada na geometria.
Em outras palavras, possuímos a noção de uma Esfera Perfeita que não encontramos em nenhum dos objetos sensíveis que conhecemos.
Isso passa também com outras realidade como, por exemplo, a Igualdade.
Não temos experiência de objetos perfeitamente iguais, porem possuímos essa ideia.
Parece então que existe um desnível entre os dados da experiência e algumas noções que possuímos: os sentidos dão conhecimentos imperfeitos, mas nossa mente encontra ideias perfeitas correspondentes.Efera pefeita?.jpg
Se conclui então que alguns dos conceitos que possuímos não chegam até nossa mente por meio dos sentidos, ou seja, já estão nela antes mesmo de termos experiências sensoriais.
Como nossos sentidos começam a funcionar no mesmo instante que nascemos, devemos supor que antes de nascer a nossa alma já deveria ter alcançado esse conhecimento pré sensorial.
O importante desse diálogo é que, diferente do Mênon, já temos certeza de que Platão conta com sua Teoria das Formas, de modo que o conhecimento que nossa alma possui antes do nosso nascimento é justamente o conhecimento das Formas.
A ideia que possuímos de Esfera Perfeita ou de Igualdade não é nada mais que a Forma de Esfera e a Forma de Igualdade.
Sócrates então explica que as almas possuem uma existência anterior a sua união com o corpo durante a qual têm a possibilidade de contemplar as coisas em si, ou seja, as Formas.
[Nesse momento, vemos que o autor não mais apela à reencarnação, pois não se trata mais de viver um serie de vidas, mas sim de um contato original com o Inteligível antes da união da alma com o corpo.
Isso será então reiterado no Fedro e no Timeu e, nesse último, Platão diz que é o Demiurgo quem mostra para as almas a verdade originária (as Formas) da qual ela se esquece em sua encarnação.
Obviamente não estou dizendo que é impossível que Platão tenha sido reencarnacionista, mas sim que é improvável uma vez que quando aparece em algum de seus diálogos costuma estar em um contexto mitológico (além do fato de que no Mênon ele da a entender que não possui muita convicção nesses mitos)]
Sócrates faz ainda uma última observação que nos será então bastante útil!!!
Diz que o conhecimento (ou recordo) das coisas em si, ainda que não seja algo dado pelos sentidos, só é possível partindo deles.
Somente a partir dos dados imperfeitos dos sentidos que se pode acessar as Formas Inteligíveis perfeitas.
Isso que dizer que não podemos pensar na reminiscência como num processo espontâneo onde, sem mais, o sujeito “se lembra” do conhecimento original que teve sua alma antes de juntar-se ao corpo, mas de um caminho que começa no Sensível e termina no Inteligível.

Ainda que o Fédon e o Mênon não sejam os únicos diálogos onde aparece esse tema, creio que já tocamos nos pontos mais importantes.
Passaremos então à segunda parte desse texto, isto é, à Dialética Platônica.

Tradicionalmente, a República é a obra de Platão na qual o autor desenvolve sua teoria política que veremos no seguinte texto.
Não vamos falar agora sobre o contexto da obra, mas simplesmente no fixaremos no Livro VI onde o autor apresenta o que chamamos de Teoria da Linha Dividida.
Ela aparece imediatamente depois do famosos Mito da Caverna e pretende explicar os estágios do conhecimento.
Vimos um pouco sobre isso quando tenteávamos fixar o lugar do Sensível na realidade.
Se você não lembra (até porque já faz praticamente um mês que eu não posto texto), Parmenides dizia que o vir-a-Ser (Sensível) era o Nada absoluto e sobre ele somente era possível opinião.
Platão, por sua vez, defendia que essa visão estava equivocada uma vez que do Nada Absoluto não seria possível nem mesmo a opinião, mas somente a absoluta ignorância.
Ao fim, a opinião, que ambos autores concordavam ser possível dar sobre o Sensível, indica que ele não é totalmente privado da marca do Ser.
Mas enfim, só mesmo pra lembrar…

Se olhamos ao livro anterior, o de número V, vemos a Platão tentando explicar quem é o verdadeiro filósofo…
[Para o autor, “filósofo” é um das funções necessárias numa polis ideal, isso, contudo, veremos melhor em outro texto]
…e faz isso separando em dois grupos distintos aqueles que estão voltados somente para as coisas belas dos que são capaz de compreender e amar o Belo em si.
Somente estes últimos podem ser verdadeiramente chamados de filósofos.
O primeiro grupo é composto dos que estão no nível apenas do conhecimento Sensível, quer dizer, que somente alcançam a opinião ou doxa (δόξα).
Já o segundo é o grupo dos filósofos, os que são capazes de se aproximarem do Inteligível e, por conta disso, possuem a ciência (conhecimento verdadeiro) ou episteme (ἐπιστήμη).
Essa diferença entre doxa e episteme tem como plano de fundo o princípio de que o conhecimento é proporcional ao ser, ou seja, de que quanto mais plenamente algo é, mas perfeito será o conhecimento daquilo.
Isso quer dizer que o conhecimento que alguém pode alcançar do Inteligível é mais perfeito que o conhecimento que se pode alcançar do Sensível, ainda que o conhecimento desse seja mais fácil de se alcançar (pois bastam os sentidos).
[Isso do Inteligível ser de modo mais pleno que o Sensível é algo que já explicamos aqui]
Existem algumas diferenças entre o conhecimento do Sensível e do Inteligível, porem ficaremos com fato de que a opinião (referente ao primeiro) não está racionalmente fundamentada tal como a ciência (referente ao segundo).
Devemos ainda ter o cuidado de não entender a palavra “ciência” da mesma maneira que utilizamos hoje em dia, pois para Platão é simplesmente o conhecimento fundamentado ou o domínio das causas [algo mais ou menos como a diferença socrática entre Ciência e Experiência, algo que pode ser lido aqui].
Isso ainda está de acordo com a atividade filosófica de Sócrates  que buscava justamente, por meio de seu exame, descobrir se os ditos “sábios” eram capazes de fundamentar aquilo que diziam conhecer.
Também falamos da crise de valores da sociedade grega da época de Sócrates e Platão que, por conta da atividade sofística (que não está limitada aos autores tratados anteriormente), não era mais capaz de preservar os valores que havia recebido pela tradição.
Na própria República, como veremos no seguinte textos, tudo está girando entorno de um problemática sobre se a justiça é realmente boa e bela, algo que é fortemente proclamado pela tradição, mas posto em prova pelos novos oradores.

Voltando então à Linha Dividida, temos a Sócrates propondo que se imagine um linha e se a divida em duas partes: a primeira diz respeito ao Sensível e a segunda ao Inteligível.
Cada um dessas partes se deve ser novamente dividida segundo o grau de clareza com que se pode conhecer as realidades de cada uma delas
Basicamente, o autor está propondo que existem graus distintos de doxa e episteme.
Vejamos essa divisão:
a) a parte Sensível:
-no primeiro nível estão as imagens sensíveis, Sócrates as apresenta como as sombras ou reflexos dos objetos físicos.
Aqui, é possível o que chamamos de eicasía (εἰκασία) ou imaginação.
-no segundo nível estão os próprios objetos, quer dizer, as coisas do mundo físico que as imagens “tentam imitar”.
Aqui, é possível o que chamamos de pístis (πίστις) ou crença.
b) a parte Inteligível:
-no primeiro nível estão os objetos matemáticos, quer dizer, os princípios geométricos e aritméticos que, como já vimos muitas vezes, estão sempre em uma situação de intermediários entre o Sensível e o Inteligível.
Aqui, é possível o que chamamos de dianoia (διάνοια), ou conhecimento mediano.
-no segundo nível estão as Formas e, obviamente, a Forma do Bem.
Aqui, é possível o que chamamos de noesis (νόησις) ou pura intelecção.

Com isso, temos uma porção de termos gregos que, por mais importante sejam para estruturar nosso pensamento sobre o que dizia Platão sobre o conhecimento, podem ser encontrados (e talvez até melhor explicados) em qualquer wikipedia da vida.
Uma vez então apresentada essa estrutura, podemos entrar no que é a dialética platônica…

A dialética é um daqueles termos filosóficos que aparece em vários sentidos ao longo da história da filosofia, ou seja, não é possível simplesmente definir o que é a dialética a partir do que disse Platão, mas apenas dizer o que se entende por isso dentro de seu pensamento.
De maneira simples, podemos dizer que a dialética platônica é o caminho pelo qual o intelecto vai desde o conhecimento Sensível ao Inteligível, ou seja, da doxa à episteme ou dos objetos concretos às Formas.
Sendo o filósofo aquele que propriamente é capaz da pura intelecção (ultimo nível da episteme), podemos dizer que ele é o dialético por excelência.
Além disso, uma vez que já se está no plano de conhecimento noético, se pode falar de duas formas de proceder dialeticamente:
a) Dialética ascendente: o fim que pretende é a Forma do Bem.
Uma vez que o sujeito é conduzido ao Inteligível (às Formas), se dá lugar a um procedimento sinótico.
O termo “sinótico” tem que ver com sinopse, um palavra que eu acho que vocês podem estar mais acostumados.
Quando estamos escolhendo um filme para ver, costumamos buscar sus sinopse, pois no permite ter um visão geral do enredo.
Tanto “sinótico” quanto “sinopse” têm que ver com a palavra grega sinopses, que por sua vez é formada pela junção de outras duas palavras: sin e óptica.
Literalmente seria algo como “ver junto” ou “ver de uma só vez”.
Isso, aplicado aos filmes, não é mais do que “ver junto (de uma vez)” todo seu argumento que será desenvolvido ao longo do enredo.
Já no caso da filosofia platônica, se trata da tentativa do intelecto de abarcar toda a multiplicidade das Formas na unidade da Forma do Bem (que já vimos que pode ser identificada com o Uno).
b) Dialética descendente: é o que permite compreender aquela trama de relações numéricas que existem entre as Formas.
Já falamos bastante sobre o fato de que as Formas de Platão possuem uma trama numérica que deve ser compreendida, porem ainda não havíamos explicado como que isso era possível.
Pois bem…
Platão propõe um procedimento diarético, ou, de divisões.
Como as Formas não são realidades físicas que possam ser literalmente divididas, se trata de partir de Formas mais abrangentes para encontrar as Formas que estão logicamente contidas ou subordinas a elas, algo como ir do mais geral ao mais particular.
Um vez então que se alcança uma Forma tão particular que não pode ser dividida (não contêm nem subordina) em outras Formas, somos capazes de estabelecer seu lugar dentro hierarquia (trama numérica) do Inteligível.

Infelizmente, não há em nenhum diálogo de Platão uma exposição sistemática de sua dialética, mas somente umas poucas pistas.
De fato, parece que a explicação mais completa que temos é justamente aquela da República onde o autor mostra como se faz para alcançar a Forma de Bem (dialética ascendente).
Quanto a dialética descendente, o máximo que temos são algumas demonstrações parciais do nexo que existe entre uma poucas Formas.

Apesar desse problema de informações, há um dado muito interessante que Platão no apresenta ao final de seu discurso sobre a Linha Dividida.
Afirma que o dialética é aquele que é capaz de ir desde simples hipóteses ao fundamento primitivo das coisa que transcende todas as hipóteses.
Um pouco depois, no Livro VII, apresenta isso de modo mais claro ao dizer que o método dialético é aquele que rejeita as hipóteses e dirige-se ao Princípio que lhe permite consolidar todas suas conclusões.
O que queremos dizer aqui é que o grande fim da dialética platônica é encontrar o que podemos chamar de um Princípio não Hipotético…
[Eu jeu tentei escrever sobre isso em todos os anteriores textos sobre Platão, mas sempre tive medo de complicar de vez as coisas.
Agora, contudo, creio que já está na hora de tocarmos nesse ponto]
Princípio não Hipotético é o que poderíamos chamar de “princípio em sentido forte da palavra”, quer dizer, um princípio auto evidente que não precisa ser fundamentado por nenhum tipo de reflexão um vez que sua própria negação já soa como algo absurdo.
O pulo do gato aqui é a identificação desse Princípio não Hipotético com a Forma do Bem, pois (além de ser defendido por muitos autores) parece algo viável na medida em que os dois são ditos como o fim da dialética Platônica.
O interessante dessa identificação entre a Forma de Bem e o princípio não Hipotético é que a partir dela entendemos melhor o que poderia significar para Platão isso de “conhecer as Formas”.
No livro VI da República, o filósofo diz que o Bem é o que concede valor e utilidade a cada uma das virtudes, de modo que o Princípio não Hipotético que identificamos como o Bem deve ser também responsável por isso.
O que acontece é que, para Platão, parece que uma virtude somente é realmente útil e valorosa se pode ser fundamentada racionalmente, ou seja, sair do âmbito da doxa e ir ao da episteme.
Como o Princípio não Hipotético é auto evidente (sua negação é absurda), pode servir de fundamento para outras verdades que mantenham com ele alguma relação de dependência.
Em outro texto (esse aqui) dissemos que a Forma do Bem é a “Forma Suprema” que faz com que todas as coisas sejam inteligíveis, algo que também podemos entender como o princípio auto evidente que fundamenta todas as demais verdades que possam ser conhecidas.
Nesse sentido, o conhecimento das Formas nada mais é do que a compreensão de sua relação com o Princípio não Hipotético que, por sua vez, garante a verdade da coisa.

A coisa fica então interessante quando percebemos que tanto no Ménon quanto no Fedon a reminiscência conduz ao conhecimento das Formas…
[no Fédon isso fica bastante explicito quando Sócrates fala com seus discípulos sobre as “coisas em si”; já no Ménon é necessário supor que, durante o exame do escravo, este deverá ao menos rememorar as Formas do Igual, Maior e Menor, algo que se pode conferir na própria obra]
…algo que já sabemos que é o fim do processo dialético que aparece na República.
Nesse sentido, a reminiscência não é simplesmente uma intuição da alma ou um “recordar-se”, mas o cume de um processo dialético ascendente, quer dizer, o encontro com o princípio não hipotético capaz de fazer com que as opiniões se convertam em verdadeira ciência.
Isso quer dizer que talvez Platão não tenha apresentado em sua República algo que substitui ou entra em conflito com a Teoria da Reminiscência, mas somente a forma final (mais técnica e menos mítica) de sua única Teoria do Conhecimento.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-MOTTA, Guilherme Domingues da. Há Teoria da Reminiscência na República de Platão? in Carvalho, M.; Cornelli, G.; Montenegro, M. A. Platão. Coleção XVI Encontro ANPOF. São Paulo: ANPOF, 2015, p. 175-186.
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

 

Platão – Cosmologia

Ao estudar o pensamento metafísico de Platão, nos deparamos com aquilo que chamamos de Segunda Navegação, a descoberta da dimensão Inteligível da realidade, e com a Teoria dos Princípios Supremos.
Nesse âmbito, sempre que falávamos do Sensível, o fazíamos em contraste com o Inteligível, ou seja, em função dele.
Isso pode levar à conclusão de que Platão é um sujeito que abandona totalmente o “Mundo Sensível” e só se preocupa com o “Mundo Inteligível” (termos estes que já indicamos estarem, no mínimo, mal matizados).
Pois bem, a verdade é que isso é uma grande mentira…
Platão não apenas aceita a dimensão sensível da realidade, mas também desenvolve toda uma teoria para explicá-la.
Chamaremos essa teoria de  Cosmologia (ou Física) platônica, porem devemos ter cuidado para não pensar que se trata de uma cosmologia (ou física) tal como a dos pré socráticos.
De fato, quando falávamos que Sócrates havia rechaçado esse tipo de reflexão filosófica, já tínhamos indicado que Platão a retomaria, porem agora cabe que também afirmemos que será de uma maneira totalmente nova e original, ou seja, de um modo que nenhum dos pensadores anteriores foi capaz de fazer.
O motivo disso, obviamente, é o fato de que Platão conta com algo que em nenhum deles teve presente: o conhecimento do Inteligível fruto da Segunda Navegação.
Pois bem, vamos ao que interessa…

Falar de uma Cosmologia é, sobre tudo, falar de como um autor entende a realidade como um todo, quer dizer, como um Cosmos.
Apesar de estarmos enfrentando esse assunto de maneira direta pela primeira vez, não seria justo dizer que não sabemos nada sobre ele, afinal, já saíram algumas informações pertinentes sobre o tema quando falávamos das dimensões metafísica e matemática.
O problema é que como focamos muito nessas dimensões do real, o que chamamos de Sensível apareceu sempre em contraposição a elas, de modo que se pode acabar fortalecendo a ideia de que Platão rechaça o mundo físico.
Para então evitar isso de uma vez, começaremos nosso estudo tentando entender a posição do Sensível dentro do pensamento do autor, quer dizer, o lugar que ele ocupa no âmbito do real.
Segundo o que já explicamos no último texto, Platão pensa que toda a realidade procede dos Princípios Supremos: Uno e Díade.
A partir desses dois seguem 3 planos: Inteligível, Matemático e Sensível.
Claro que quando utilizamos o termo “planos” não podemos pensar como realidades separadas, mas como dimensões distintas de uma mesma realidade, quer dizer, como sua estrutura metafísica hierárquica (mas sobre isso já falamos suficientemente nos textos anteriores).
Ademais, também afirmamos que o plano matemático ocupava um posição intermediária em relação aos outros dois planos uma vez que teria características de ambos.
O que acontece é que até aqui estamos dentro do que chamamos de gêneros de Ser, pois cada um desses planos são considerados dimensões do Ser.
Se porém acrescentamos nessa escala o não-Ser, a situação muda e é o plano Sensível que passa a ser considerado um intermediário entre Ser e não-Ser, algo que Platão parece afirmar tendo em vista a filosofia de Parmênides.
O que Platão chama de plano Sensível pode ser analogamente pensado como o que Parmênides chama de “mundo dos fenômenos”
14859551_1157439324335084_2099254753_o(ou do vir-a-Ser), algo que esse autor identifica com o nada absoluto, ou seja, com o não-Ser.
Resumindo muito o pensamento desse pré socrático (até porquê já temos um texto onde abordamos bastante a filosofia dele), ele identifica o vir-a-Ser com o não-Ser, quer dizer, o mundo dos fenômenos é na verdade o Nada Absoluto.
Além disso, como o vir-a-Ser (que para Parmênides já é não-Ser) está sujeito ao movimento e à mudança, se afirma que dele não é possível alcançar verdadeiro conhecimento, mas somente opiniões.
Platão aceitará (e demonstrará em sua obra República) que realmente só são possíveis opiniões no que diz respeito ao plano Sensível, porem desenvolverá um pouco mais a argumentação.
Nesse ponto teremos que entrar um pouco no assunto do próximo texto, quer dizer, na sua Teoria do Conhecimento, porem tentaremos não perder muito tempo aqui.
Na República, apesar de aceitar que o verdadeiro conhecimento só é possível se referido ao Ser verdadeiro (Inteligível), o autor rejeita que as opiniões digam respeito ao não-Ser, pois se levarmos a noção de Nada Absoluto até suas últimas consequências, a única coisa possível seria a absoluta ignorância (afinal, se não é nada em absoluto, sequer se pode opinar sobre).
Assim, a opinião deve ser concebida como uma categoria de conhecimento intermediária entre Ciência e Ignorância.
Se então voltamos a olhar para o vir-a-Ser (que os dois autores concordam que é objeto de opiniões), temos que concluir que ele está justamente numa categoria intermédia entre o Ser verdadeiro (do qual é possível ciência) e o Nada Absoluto (do qual é somente possível ignorância).
Ora, em vista disso, Platão afirmará que o Sensível, ainda que não seja o Ser verdadeiro (pois esse é o Inteligível), tão pouco pode ser considerado como não-Ser em sentido absoluto, isto é, como totalmente privado da marca do Ser (pois se assim o fosse sequer seria possível opinar sobre ele).
Dessa forma, mesmo que o Sensível não “seja” o Ser, pelo menos ele “tem” Ser, de maneira que dizemos que participa (possui de maneira imperfeita) do Ser do Inteligível
Basicamente, a solução será afirmar que, mesmo que não seja o Ser, o Sensível tem Ser por participação do Inteligível.
Ao fim, temos o seguinte:
-Ser (Inteligível): aquele que é sempre, ou seja, não está sujeito à geração ou ao devir, mas permanece sempre nas mesmas condições;
[As coisas das quais se pode dizer “Ser” em sentido pleno]
-Vir-a-Ser (Sensível): aquele que está em constante mudança, ou seja, está sujeito à geração e ao devir, de modo que nunca é Ser, mas tem Ser.
[As coisas das quais se pode dizer “Ser” somente em sentido parcial]
-Não-Ser (Nada): Nada, Nada, Nada
[Nada]
Também podemos dizer que, dentro dessa nova escala, os seres matemáticos estão entre aqueles dos quais se pode dizer “Ser” em sentido pleno, afinal, o critério aqui é mais a imutabilidade e não tanto a unidade.
demiurgo
Ora, aquilo que definimos como vir-a-Ser também deve estar sujeito ao processo de geração, de modo que, segundo o Timeu (a obra de Platão que serve de referencia para o estudo de sua cosmologia), exige uma Causa que o produza.
O autor chamará essa Causa de Demiurgo ou seja, Artífice.
E aqui parece bom que paremos um pouco para explicar esse pequeno salto que demos desde “estar sujeito ao processo de geração” à “exigir uma Causa que o produza”.
De fato, não é difícil de aceitar que tudo aquilo que é gerado deve necessariamente ter sido gerado por algo, afinal, sem causa não há efeito.
Além disso, essa relação de Causa e Efeito é tão forte que a inteligência humano ante determinado efeito tendo buscar a sua causa, e isso se pode observar com um simples exemplo…
-se pela manhã vemos uma criança correndo onde não deve correr, imediatamente nos perguntaremos por seus pais (Causa Eficiente da criança);
-se então, pela tarde, algo aparece quebrado, provavelmente nos perguntaremos por aquela criança (possível Causa Eficiente da coisa quebrada).
Se levarmos essa relação de Causa e Efeito até suas últimas consequências, perceberemos que o Cosmos, ou seja, a realidade como um todo, também precisa de uma Causa Eficiente que a explique, isto é, que justifique que esteja ali agora quando antes não estava.
Nesse sentido, entendemos o Demiurgo como a imagem que Platão utiliza para falar da Causa da realidade como um todo e não como uma criança que brinca de modelagem.
De fato, parece que ele ocupa o lugar daquela Inteligência ordenadora da qual falava Anaxágoras e que, como vimos em outro texto, chamou muito a atenção de Platão.

Outra informação importante que temos no Timeu é a de que o Demiurgo produz tudo segundo um modelo segundo o qual seu produto será ou não será belo.
Esses modelos podem ser de dois tipos:
-aquilo do qual se pode dizer “Ser”: nesse caso a obra é bela, pois seu modelo é Eterno e imóvel;
-aquilo do tipo do qual se pode dizer “Ser” somente de forma parcial: nesse caso a obra não é bela, pois seu modelo é gerado e sujeito ao devir.foto-tremida
E para entender o motivo disso basta você tentar tira de um sujeito que não para de se mexer, obviamente ela vai ser toda tremida e estranh…
Ora, tanto o princípio de que as coisas geradas precisam de uma Causa que as produza, quanto a afirmação de que essa Causa produz segundo um modelo, podem ser considerados como os axiomas que fundamentam teoreticamente o pensamento cosmológico de Platão.
Ao aplicarmos esses princípios aos cosmo físico, encontraremos como que a “Coluna Vertebral” de sua filosofia cosmológica…

mundo-e-beloComo já sabemos que o Sensível está baixo o vir-a-Ser, consequentemente somos levados a afirmar que é algo produzido pelo Demiurgo.
Além disso, se levarmos em conta que o mundo é belo (e isso devemos entender como um pressuposto ao qual todos os gregos antigos estão de acordo) consequentemente o modelo que o Artífice utiliza para produzi-lo está no âmbito do Ser, ou seja, do Eterno e imutável.
Ao fim, a cosmologia filosófica de Platão pode ser dita segundo a seguinte tese geral:
-O Sensível é uma imagem do Inteligível produzida pelo Demiurgo.
A partir disso vamos tentar desenvolver o pensamento cosmológico do autor e, para que isso seja um pouco mais simples, vamos dividir essa afirmação em duas partes.

a)”O Sensível é uma Imagem”:
sensibilidadeA primeira coisa que me parece interessante de observar é a palavra Sensível, pois já levanta uma questão que até agora não apareceu, quer dizer, de onde vem a sensibilidade.
De fato, a característica mais óbvia do mundo físico é justamente o fato de ser acessível pelo sentidos, de modo que ainda que já saibamos que o Inteligível é causa meta empírica do Sensível, descobrimos agora uma característica deste que não pode ser explicada por aquele.
Para resolver isso, o primeiro passo é  lembrar que, para Platão, toda a realidade é uma “mescla” de dois princípio opostos: Ilimitado e Limitante.
Dada a sensibilidade (ou materialidade), é necessário que um dos princípios dê conta de a explicar.
Em outras palavras, um dos princípio deve ser entendido como um “Princípio Material”.
De fato, parece que esse termo é estranho às obras platônicas, porem o testemunho indireto sobre as Doutrinas não Escritas (Aristoteles principalmente), afirma que a ideia de um “Princípio Material” já está em sua filosofia e tem a ver com a Díade.
Isso, de entrada, mostra que esse “Princípio Material” está baixo o conceito de Ilimitado, de modo que alguém poderia concluir que o princípio oposto e Limitante são justamente as Formas.
Pois bem, essa conclusão está no caminho certo e indica que já estamos entendendo bastante da estrutura do pensamento de Platão, porem faz falta uma pequena correção.

sombrasEm realidade, o que autor diz que se “junta” com o “Princípio Material” são as Imagens das Formas (razão pela qual chamamos o Sensível de Imagem).
Nessa linha, podemos dizer que esse “Princípio Material” funciona como um “receptáculo” para essas Imagens, de modo que sempre que vemos algo no mundo físico se trata de “Matéria moldada” segundo determinada Imagem.
O que acontece é que, para ser capaz de receber toda e qualquer Imagem das Formas, o “Princípio Material” deve ser absolutamente Indeterminado (algo que, tal como Ilimitado, tem a ver com a Díade).
Nesse sentido, dizemos que se trata de uma “Matéria” totalmente amorfa (privada de forma) e que nunca abandona essa natureza, ou seja, que mesmo que possa ser “modelada” segundo várias Imagens, nunca as assume a ponto de identificar-se definitivamente com elas.
Isso ainda vai supor que não podemos falar de um aceso empírico a esse princípio, afinal, é impossível ter experiência de algo totalmente amorfo, ou seja, privado de toda e qualquer determinação das Imagens (essa última afirmação fica mais clara quando estudamos a Teoria do Conhecimento).
Mas enfim…

Essa radical ausência de limites e determinações que caracteriza o “Princípio Material” pode ser também entendida como total ausência de ordem, algo que o próprio autor indica no Timeu.
Para ele, antes de receber as Imagens, o “Princípio Material” seria como um grande conjunto de forças e afeiçoes totalmente desconectados (sem qualquer ordem ou equilíbrio) e dotado de um movimento totalmente desprovido de finalidade, isto é, sem uma Inteligência que o conduza para determinado fim.
Nesse sentido, o movimento do “Princípio Material” é regido pela anagké (ἀνάγκη) ou “necessidade” (que no contexto dos gregos antigos parece significar justamente uma ausência de finalidade), ou seja, por algo que atua de modo anômalo e ao acaso como uma “Causa Errante”.
O mais interessante, todavia, é o fato de que muitos especialistas insistem na identificação do “Princípio Material” com a noção platônica de “espaço”, que em grego se diz chora (χώρα).

vaca-no-espacoObviamente, para que não nos soe muito estranho essa afirmação, devemos entender bem que quando Platão fala de uma chora, não está se referindo ao espaço vazio (que se assemelha muito com o Nada),  mas a algo que é propriamente um gênero da realidade.
Desse modo, além dos outros dois gêneros que já conhecíamos, quer dizer, o Inteligível (que nesse contexto engloba também o matemático) e o Sensível, o filósofo acrescenta um terceiro que vamos chamar de Espacial (ou Espacialidade).
De fato, tudo que nasce e perece o faz em determinado lugar ou tópos (τόπος), de modo que falar de um Sensível (marcado justamente pela geração e corrupção) parece pedir que falemos também do Espacial que lhe proporciona localização ou, em grego, edra (εδρα).
Ao descrever essa Espacialidade em suas obras, uma das primeiras afirmações do autor é que deve ser algo que permaneça sempre sem nunca corromper-se (pois se desaparecesse o espaço, tudo que está nele sumiria junto).
Além disso, também afirma que não pode ser conhecido pelos sentidos, mas somente por um “raciocínio hipotético” (a palavra mesmo é “espúrio”, mas eu acho feia).
Ora, essas duas afirmações do autor sobre a Espacialidade mais o fato de que ele a entende como aquilo que da ao Sensível sua localização nos permite propor, pelo menos como algo razoável, a identificação entre Chora e “Princípio Material”.
Vejamos como…

Em primeiro lugar, a Espacialidade pode ser justamente pensada como um receptáculo para as imagens das Formas (tal como o “Princípio Material”), pois é na chora que as coisas nascem e perecem, ou seja, onde se “recebe” e se “perde” as imagens.
Se pensarmos em “ocupar determinado espaço” como “ter sensibilidade” a conclusão é que, tal como o “Princípio Material”, o Espacial é causa (ou condição) da materialidade e sensibilidade das coisas físicas.
Além disso, outra característica desse receptáculo das imagens das Formas é que, ainda podendo ser “modelado” segundo cada um delas, nunca se identifica com elas, a ponto de que, mesmo dada a corrupção da coisa (que entendemos como a perda da imagem), o que chamamos de “Matéria” permanece sem modificar-se em sua natureza amorfa.
Nesse sentido, se pensamos na Chora como aquilo que permanece sempre sem nunca corromper-se, vemos que se trata de uma característica que casa perfeitamente com o “Princípio Material” desenvolvido por Platão.
Por último, tal como a noção de Espaço do filósofo, o “Princípio Material” pelo próprio fato de ser amorfo, é totalmente incognoscível aos sentidos, ou seja, só pode ser conhecido por meio de um raciocínio hipotético.
Obviamente devemos dizer que tais semelhanças entre o Princípio Material de Platão e sua noção de Chora não nos proporcionam uma juízo conclusivo, porem, ainda que não possamos afirmar categoricamente a identificação de um com o outro, podemos dizer ao menos que se trata de uma proposta razoável.
A esses argumentos, podemos ainda acrescentar algo do testemunho indireto das Doutrinas não Escritas.
Afirma que a Espacialidade platônica tem muito que ver com a Díade Indefinida no sentido de ambas serem ilimitadas na dupla direção do grande e do pequeno (ou do mais e do menos).
Baseando-se nisso, Reale afirma que a noção de Espaço apresentada no Timeu representa o que seria a dimensão sensível da Díade Indefinida, mas isso é melhor explicar um pouco mais devagar…

Como vimos anteriormente, as 3 grandes esferas da realidade (Inteligível, Matemática e Sensível) supõe cada uma delas aqueles dois princípios, a saber, o Uno e seu princípio antitético, quer dizer, a Díade.
Se esse princípio antitético do Uno é no plano do Inteligível a causa da pluralidade e gradação hierárquica das Formas e no Matemático a causa da multiplicidade horizontal dos números (ambos temas que tratamos antes); podemos dizer que no Sensível funciona como causa da multiplicidade física, ou seja, da própria sensibilidade.
De fato, Aristóteles não só diz que Platão supõe um “Princípio Material”, mas também que contempla tanto uma “Matéria Inteligível” (que seria a Díade em relação ao Inteligível e ao Matemático) quanto uma “Matéria Sensível” (A Díade em relação ao Sensível).
Nesse sentido,  a Chora seria algo que “entra” na Díade, mas não a esgota, ou seja, ainda que não possamos entender toda a Díade como Espacialidade, podemos entender a Espacialidade como “parte” da Díade (e nesse sentido se entende quando Reale diz que a Chora é a dimensão sensível da Díade indefinida).

Antes então de seguirmos, vejamos um último dado das Doutrinas não Escritas sobre o Sensível que pode causar alguma confusão: o Uno é causa do Bem e a Díade do Mal (e isso nos diz Aristóteles).
No Teeteto, Platão afirma que “o mal não pode ter lugares entre os deuses”, ou seja, no plano Inteligível.
Isso já indica que, se a Díade pode ser entendida de alguma maneira como “causa do mal”, concretamente somente na esfera do Sensível.
imagens-divertidas-mais-alto-do-mundo-vs-mais-baixo-do-mundo-rd4rjhdkdb8.jpegApesar disso, de maneira um pouco mais abstrata, ela causa no Inteligível algo que pode ser entendido como mal, ainda que não em sentido próprio.
Basta termos um pouco de boa vontade e pensarmos nos pares de Formas contrárias onde uma delas se entende como uma Forma “negativa” em relação a outra.
Sendo a Díade o princípio de diferença entre uma forma “positiva” e outra “negativa”, la pode sim, nesse caso, ser considerada como causa do “mal” na esfera do Inteligível.
[Apesar, contudo, de toda essas explicação, penso que o melhor mesmo seria simplesmente não considerar muito essa hipótese e simplesmente entender o testemunho de Aristóteles como referido somente à Díade no Sensível, ou seja, enquanto “Princípio Material”]
O próprio autor, quando diz que o mal não tem lugar no Inteligível, afirmar em contrapartida que, pelo própria natureza perecível do Sensível, é impossível que esteja livre dos males (algo que também está no Teeteto).
Parece que, para Platão, não é absurdo que, talvez pelo fato de que o Uno não possui total domínio sobre o “Princípio Material”, mesmo depois de receber a determinação das imagens das Formas, siga existindo nele alguma desordem ou desmesura.
Seria então justamente isso que permitiria algumas consequências negativas (sempre ligadas ao Sensível) como por exemplo a insuficiência gnosiológica (o fato de que do Sensível não se alcança verdade, mas somente opinião) ou a caducidade ontológica (que aí as coisas não são Ser, mas somente Vir a Ser).
E depois de ter dito tudo isso, passemos para a segunda parte de nossa tese geral…

b)”do Inteligível produzida pelo Demiurgo”:
Talvez, a primeira coisa que chame atenção aqui, seja onde dividimos a sentença.
De fato, seria gramaticalmente mais comum deixar “imagem” e “do Inteligível” juntos, afinal, possuem uma relação gramatical que faz com que o segundo não tenha sentido separado do primeiro.
Apesar disso, essa divisão tem uma função didática que mais pra frente explicaremos melhor.
De modo geral, essa parte da sentença original indica algo que já falamos antes, quer dizer, que o Demiurgo produz as coisas tendo como modelo o Eterno e imutável (Inteligível).
Sendo assim, tentaremos agora entender um pouco mais sobre esse Demiurgo e em que consiste esse produzir as coisas segundo o Inteligível.
Demiurgo.jpgA primeira precaução que devemos ter nessa parte do texto é a de não pensar no Demiurgo de maneira antropomórfica, isto é, como se fosse uma entidade cósmica com características humanas tipo os deuses gregos.
Ainda que muitas vezes Platão o retrate assim, não devemos esquecer o que já dissemos em textos anteriores sobre o uso de imagens e mitos nos escritos platônicos.
Para evitar esse problema, simplesmente deixaremos entre aspas algumas palavras que possam levar a essa antropomorfização ou personalização.
No Timeu, a característica mais importante do Artífice é a de ser o bom em sumo grau, ou seja, o ótimo.
Platão entende que ele é o que melhor realiza o bem, isto é, que o realiza em sumo grau.
Para entendermos essa afirmação, devemos ter em mente que, para o gênio grego, o mundo não só é algo belo, mas a coisa mais bela que existe, o que leva a concluir que “quem” produz o cosmos deve necessariamente ser o melhor dos Artífices justamente por produzir a mais bela das coisas.
Além disso, Platão ainda diz que o Demiurgo não pode ser “invejoso”, pois se o fosse não seria o ótimo, de maneira que “deseja” que todas as coisas sejam boas.
Justamente isso é o que o leva a atuar como uma Inteligência ordenadora (mais ou menos como já havia proposto Anaxágoras) colocando ordem naquele feixe primordial de agitações caóticas que havíamos identificado com o “Princípio Material”.
Podemos então observar que, dentro do pensamento de Platão, isso de ordenar o desordenado é a mesma coisa que atuar o Bem em sumo grau.
Nesse sentido, toda operação do Demiurgo se dá segundo a próprio Forma do Bem que Platão, em textos anteriores, parece ter identificado com o Uno.
[De fato, Reale traz em sua obra uma série de exemplos pelo qual o Uno pode ser dito como a Marca Emblemática do agir do Demiurgo, porem não me parece que, para o que queremos aqui, seja necessário trazer esses exemplos]
Em resumo, dizer que o Demiurgo “produz”, pode ser entendido como “realiza a unidade (o Bem) na multiplicidade (Matéria)”.
Pois bem…

Agora que já sabemos um pouco mais sobre o Demiurgo e em que consiste seu ato de produzir, resta entendermos de que maneira ele leva o Uno ao múltiplo.
Aqui será então onde entrarão as Formas e suas Imagens…
Quando dizemos que elas são modelos, não podemos imaginar que ele está literalmente olhando pra elas e fazendo um desenho no estilo de Jack e Rose em Titanic, afinal, esse seria aquela antropomorfização inadequada sobre a qual já alertamos.
Apesar disso, esse tipo de analogia é bastante útil se tivermos o devido cuidado de não misturar as coisas…
Digamos que determinado artista deseja pintar um quadro do Cristo Redentor.
Como seria muito difícil encontrar uma tela de pintura de X metros de altura e Y de largura, ele terá que se contentar em reproduzir aquela imagem em algo uma tela um pouco menor, de modo que não será um desenho do mesmo tamanho do original, mas muito menor.
Ora, apesar de todos sabermos que o Cristo Redentor é grande e não pequeno, não teríamos nenhum problema em reconhecer que aquela imagem, ainda que muito menor que o monumento original, é realmente uma imagem dele.
O motivo pelo qual somos capazes de reconhecer um grande monumento num pequeno quadro é o fato de que o artista soube reproduzir na imagem as proporções matemáticas do modelo.
christ-the-redeemer-made-of-green-bubbles_23-2147493443Em outras palavras, ele percebeu, por exemplo, que o tronco do Cristo Redentor é tantas vezes maior que sua cabeça, de modo que se ele respeita essa proporção que existe entre essas duas partes do corpo do monumento, ele pode o reproduzir no tamanho que quiser.
Incluso podemos dizer que, em alguns casos, basta respeitar essas proporções para que o modelo possa a ser reconhecido na imagem.
Em Platão, podemos dizer que o Demiurgo realiza algo parecido com as Formas.
Como apresentamos anteriormente, o autor entende que as Formas possuem uma estrutura metafísico-numérica que é reproduzida pelos seres matemáticos intermédios.
A partir então dessa estrutura metafísico-numérica, o Demiurgo tira um logoi, quer dizer, algo como relação numérica ou simplesmente uma medida.
Isso funcionará analogamente à proporção que no Cristo Redentor existe entre cabeça e tronco e que o artista deve respeitar na hora de fazer sua pintura.
A parti então dessa relação numérica, o Artífice introduz ordem e proporção (limites e determinações) no “Princípio Material” (ilimitado e determinado), de modo que tal como se pode ver o Cristo Redentor em sua pintura, também se percebe algo do Inteligível realizado no Sensível.
Se tratando então apenas de uma medida, é possível que seja utilizada em várias “porções” do “Princípio Material”, de modo que a Forma Inteligível que forneceu a relação numérica, e que é em si mesmo una, poderá ser reconhecida em muitas realidades sensíveis.
Basicamente, a ação do Demiurgo consiste em levar o Uno aos muitos por intermédio dos logoi e produzir um Ser gerado que realize sensivelmente da melhor maneira possível o Ser não gerado.
Eu imagino, contudo, que para quem está um pouco menos familiarizado com a filosofia possa ter ficado um pouco confuso, afinal, a necessidade de abstração para entender essas coisas faz desse um tema um pouco salgado.
Sendo assim, vou colocar alguns exemplo que possam ajudar vocês a entenderem isso de “realizar sensivelmente da melhor maneira possível o Inteligível”…

I) O Tempo:
Um exemplo bastante interessante é o que Platão fala sobre o Tempo, algo bastante típico ao plano Sensível, porem totalmente estranho ao inteligível.
Sendo então algo produzido pelo Demiurgo, deve ser algo que “realiza sensivelmente da melhor maneira possível o Inteligível” que lhe serve de modelo.
Não faz falta muito esforço para concluir que se existe algo típico do Inteligível que pareça ter que ver com o Tempo será justamente o que chamamos de Eternidade (de fato, se alguém se interessa um pouco pela noção de Tempo na filosofia, logo descobrirá que é quase impossível falar dela sem também trabalhar a ideia de Eterno).
Será também no Timeu que encontraremos a doutrina de Platão sobre o assunto e, resumindo muito, ele diz aqui que a Eternidade é um “permanecer na unidade”.
Tempo.jpgSendo então o Tempo uma imagem produzida pelo Demiurgo a partir da Forma do Eterno, temos que ele é criado de modo que, dentro dos limites do Sensível, possa imitar o “permanecer na unidade” do Eterno Inteligível.
Em outras palavras (as de Platão para ser mais exato) o Demiurgo produz uma imagem móvel da Eternidade, ou seja, um “fluir do Eterno”.
Isso se dará justamente por meio da mediação dos logoi, de maneira que temos o fluir do “permanecer na unidade” segundo um ritmo numérico e cíclico.
Se trata então de um movimento todo determinado pelos números (algo que incluso já está proposto pelo movimento pitagórico, ainda que sem todos os matizes metafísicos de Platão) do qual nasce o “era” e o “será”.
Isso significa então que “era” e “será” só podem fazer referência às realidades sensíveis, pois às inteligíveis somente se refere o “é”.

Elements.jpgII) Os elementos:
Outro exemplo bastante interessante é a doutrina de Platão sobre a criação dos elementos.
Como vimos anteriormente, o autor critica a Anaxágoras por, apesar de já apresentar a noção de “Causa Inteligente”, não saber muito bem como desenvolve-la e acabar atribuindo aos Elementos (Água, Fogo, Ar e Terra) o papel de causas do mundo físico.
Para o filósofo, esses elementos não poderiam ser eles mesmo os Princípios geradores da realidade, mas apenas condições para a constituição da mesma.
Isso quer dizer que os elementos devem ter sio produzidos pelo Demiurgo e, uma vez criados, utilizados no reto do processo de produção do cosmos.
Ao fim, o autor deve dar conta de explicar a maneira pela qual o Demiurgo produzirá esses elementos.
A primeira coisa que estabelece é que, antes da ação do Demiurgo, estes elementos estavam totalmente desordenados no que já chamamos de “Princípio Material”.
Para então produzi-los, o Artífice e começa a estabelecer ordem mediante determinações e limites segundo uma medida numérica.
E agora que a coisa fica interessante, pois Platão diz que o modelo utilizado pelo Demiurgo foram as duas “formas mais belas” de triângulos:
-Triângulo Isósceles Reto
-Triângulo Equilátero*
[*Na verdade, o autor fala do tipo de Triângulo que se consegue ou dividindo o Equilátero em dois  ou dividindo e seis partes iguais (isso se faz traçando linhas perpendiculares em relação a cada um dos lados do do triângulo a partir do vértice oposto de cada um deles), mas como no fim das contas, ao longo da explicação, o autor vai chegar ao equilátero, penso que a coisa fica mais simples se simplesmente já partirmos dele]
Vejamos cada um dos elementos:
a) Água:
-com a estrutura de 4 triângulos isósceles retos, é possível formar um quadrado;
-com seis quadrados se forma um cubo;
-esse cubo será a “estrutura atômica” do Elemento Água.
b) Fogo:
-com 4 triângulos equiláteros se pode formar uma pirâmide triangular (ou tetraedro);
-esse tetraedro será a “estrutura atômica” do Elemento Fogo.
c) Terra
-com 8 triângulos equiláteros se pode formar um octaedro;
-esse octaedro será a “estrutura atômica” do Elemento Terra.
d) Ar
-com 20 triângulos equiláteros se pode formar um icosaedro;
-esse icosaedro será a “estrutura atómica” do Elemento Ar.
Ora, cada uma dessas partículas não são visíveis na natureza, mas quando se juntam em grande quantidade se tornam sensíveis.
Podemos duvidar, contudo, que Platão pretenda estar falando de modo literal, quer dizer, parece que o autor apenas quer mostrar a seus ouvintes que a racionalidade dos corpos sensíveis (que muito por conta dos pré socráticos estava ligada a mistura e relação desses Elementos) depende diretamente da estrutura matemática que possuem que, por sua vez, é fruto da ação inteligente do Demiurgo.
Em outras palavras, as estruturas geométricas são realidade matemáticas puramente inteligíveis que, ao serem aplicadas inteligentemente ao “Princípio Material”, dão origem aos corpos que vemos.

Ao fim, vemos que, para Platão, a ação do Demiurgo se reduz a basicamente levar, em todas as coisas, ordem à desordem a partir de proporções e relações numéricas e geométricas.
Isso, não outra coisa, é levar o Uno aos múltiplos da melhor maneira possível.
Ao fim, se tivermos prestado atenção, perceberemos que já está em Platão (pelo menos no que diz respeito a sua cosmologia) algo que tradicionalmente somente se atribui a Aristóteles, quer dizer, as 4 causas.
Em algumas semanas, quando estudarmos Aristóteles, isso vai ficar mais claro.
Entretanto, se você já teve a oportunidade de estudar algo de filosofia, fica o desafio de ler novamente o texto e descobrir onde estão as 4 causas, a saber: Material, Formal, Eficiente e Final.”

De fato, muito mais se poderia falar sobre a cosmologia do autor, porem começaríamos a aprofundar num tema que talvez não chegasse nunca ao fim.
Assim, damos por terminada essa parte de nosso estudo, ainda que sem nos fecharnos para a possibilidade de um posterior desenvolvimento segundo nossas possibilidades.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

 

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

Platão: Metafísica Parte 2

“No último texto trabalhamos sobre a Teoria das Formas de Platão, isto é, sobre o pensamento metafísico do autor que esta presente em suas obras.
De fato, tal proposta filosófica tal como a apresentamos é mais do que suficiente para justificar os demais pensamentos que aparecem nos demais escritos.
Apesar disso, podemos levantar um problema dentro da própria Teoria das Formas que não aparece resolvido em nenhum dos diálogos do autor.
Para entendermos de que se trata esse problema, devemos entrar um pouco no modo grego de pensar.
Desde os pré socráticos, parece que todo o intento de explicar a realidade está sintetizado na busca por um princípio unificador.
De fato, todos eles tentaram explicar a multiplicidade do cosmos a partir de uma única Matéria Primordial em Estado Primordial, de modo que a expressão mais extrema dessa postura encontramos no eleatismo (filosofia de Parmenides e companhia).
O mesmo vemos na Filosofia Moral de Sócrates onde toda a vida ética do indivíduo era reduzidas à virtude enquanto ciência.
Assim, seguindo a visão de mundo de seu tempo, Platão também concebe a Teoria das Formas como uma maneira de unificar a multiplicidade da realidade, afinal, como já foi visto no último texto, o principal papel das Formas é o de unificar a multiplicidade das coisas sensíveis e singulares.
E aqui surge a dificuldade, pois Platão não fala de apenas uma única Forma, mas de uma multiplicidade delas.
Em outras palavras, Platão explica a pluralidade sensível com uma pluralidade inteligível.
O problema é que a Teoria das Formas não é capaz de resolver essa multiplicidade do Inteligível, de modo que faz falta algo capaz de explicar isso que, todavia, não está desenvolvido nos escritos do autor.

Tal situação, contudo, não significa que estamos estagnados, afinal, podemos contar a a Tradição Indireta e com algumas pistas que o filósofo vai deixando em suas obras.
Mesmo que ele não tenha querido colocar por escritos as “coisas de maior valor”, o fato é que pelo menos as estava pressupondo quando escreveu.
Fédon.jpgNo próprio Fédon temos uma indicação claríssima de que poderia existir algo além da Teoria das Formas.
Quando Platão retrata Sócrates falando sobre as Formas, às apresenta como um postulado, quer dizer, algo que Sócrates estabelece como verdadeiro e que serve de critério para saber o que é correto (aquilo que está de acordo com o postulado) e o que é errado (aquilo que não está em acordo com o postulado).
O que acontece é que em determinado momento do Fédon, Sócrates vai dizer aos que estavam presente como deve funcionar isso de pensar por postulados.
Além de examinar todas as consequências que decorrem dele, é preciso em seguida buscar um outro postulado que o justifique, quer dizer, que o fundamente.
Assim, o seguinte postulado deve ser arduamente examinado e mais uma vez se deve buscar outro que o justifique, de modo que tal processo se repete até que se alcance o que podemos chamar de “Postulado Supremo”, isto é, um postulado que não tem necessidade de outro que o justifique.
Também na República vemos Platão falar, através de Sócrates, desse “Postulado Supremo” como o que está acima de todos os demais postulados e funciona como o vértice ao qual todos ele convergem.
Isso é interessante, pois parece bastante com o método dialético de Teses e Críticas que propunha Sócrates em seu exame.
A dificuldade, todavia, vem do fato de que Platão não desenvolve em seus escritos esse tema, de modo que não temos muitos dados sobre o que seria o “Postulado Supremo”.
Entretanto, a Tradição Indireta nos dá mais ou menos uma idéia sobre o que tinha Platão em mente ao falar essas coisas.
Segundo ela, o filósofo considerava que acima das Formas estavam os Princípios Supremos, quer dizer, as “coisas de maior valor”.
Baseados nisso, me parece razoável pensar que somente tais Princípios Supremos possam ser tais que, uma vez atingidos, excluam a necessidade de uma justificação ulterior.
Será então no conjunto das Doutrinas Não Escritas sobre os Princípios Supremos que encontraremos informações sobre o que parece ser o cume e o fim da metafísica platônica que fundamentará sua Teoria das Formas.

Aristoteles e Sexto Empírico são alguns dos filósofos que, ao comentar Platão, indicam que os Princípios Supremos são o Uno e a Díade.
Esse segundo princípio, chamado Díade, pode ser um pouco mais difícil de entender, de modo que as próximas linhas serão um pouco complicadas, porem, uma vez que o entendamos bem, o papel do Uno fica mais claro.
[Sendo assim, vamos com calma… e Coragem!!!]
Coragem.jpg
Grande e Pequeno.jpgAristoteles quando fala dela a chama de Grande-e-Pequeno, mas isso devemos entender como infinita grandeza e infinita pequenez, afinal, falar de grande e pequeno poderia acabar sendo algo demasiado palpável e só nos confundiria.
Em outras palavras, podemos entender a Díade como tendência ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno ao mesmo tempo, de modo que disso entendemos que ela é Ilimitada.
Além disso, Sexto Empírico vai referir-se a ela como a Dualidade Indeterminada pela qual todas as dualidades determinadas são dualidades.
Parece algo estranho de se dizer, mas tem sua razão.
Em primeiro lugar temos que agora, além de Ilimitado, esse princípio também é Indeterminado.
Depois, para facilitar, vamos ler a palavrinha “Dualidade” como “Multiplicidade”, pois além de nesse contexto significarem a mesma coisa, é com o segundo termo que viemos trabalhando desde que começamos com Platão.
Se assim o fizermos, temos então que a Díade é a Multiplicidade Indeterminada pela qual todas as multiplicidades determinadas (inclusive as Formas em seu conjunto) podem ser chamadas de multiplicidade.
Em resumo, vamos dar para a Díade o seguinte apelido: Princípio (ou Motivo) Indeterminado e Ilimitado de Multiplicidade.
Agora, quando falamos de Multiplicidade, devemos devemos agregar ainda outros três termos que têm muito que ver com esse conceito, são eles: pluralidade, diferença, gradação.
Sendo assim, a Díade será o Princípio Indeterminado e Ilimitado que explica o porquê das coisas (e também das Formas) serem plurais (há várias), diferentes (não são todas iguais) e gradativas (há uma hierarquia).

Uno.pngO Uno, por sua vez, atua justamente como um polo oposto à Díade, quer dizer, como um Princípio de Unidade Determinante e Limitante.
Em Metafísica, a ação do Determinante no Indeterminado faz surgir o Determinado, e a ação no Limitante no Ilimitado faz surgir o Limitado (algo que mais ou menos já havíamos visto nos pré-socráticos).
Com isso, o Uno atua sobre a Díade de modo que, na medida em que a determina e a limita, faz nascer múltiplas realidades determinadas e limitadas.
Ora, falar de algo determinado e limitado permite que eu o entenda como Unidade, de modo que o que teremos serão Unidades Múltiplas (pois se fala de várias dessas unidades que são diferentes e estão hierarquicamente organizadas).
Assim, as Formas que derivam na ação do Uno sobre a Díade podem ser consideradas justamente como Unidades Múltiplas e, cada um delas, como uma síntese de unidade e multiplicidade.
Ao fim, parece correto afirmar que Platão entende toda a realidade (incluso o Ser, mas disso falamos depois) como uma derivação da “mescla” dês dois Princípios Supremos, porem, essa última informação pede algum matizes.

Quando falamos de “mescla” e de “dois” Princípios podemos cair no erro comum de pensar no Uno e na Díade como realidade independentes e separadas que um dia se juntam e “VRAU”: aparecem as Formas!!!
A primeira coisa que devemos ter em mente é que não existe a menor possibilidade de separação entre Uno e Díade, pois um Princípio depende estruturalmente do outro.
No último texto, falávamos algo parecido sobre a relação entre Inteligível e sensível, quer dizer, que não existia dualismo (separação), mas dualidade.
Bipolar.jpg
Pois bem, no caso do Uno e da Díade nem de dualidade podemos falar, mas de algo que poderíamos chamar de “bipolarismo” (mas não tipo esse lance que se vê em psicologia).
Veja bem, entre os gregos antigos parece que podemos falar de algo chamado “forma polar de pensamento”, quer dizer, uma modo de ver o mundo como pares de contrários que está na base de toda a produção espiritual grega.
Alguns exemplos encontraríamos na própria mitologia grega onde as forças cósmicas do princípio são divididas em duas esferas representadas por Caos (amorfo) e Gaia (forma) ou no fato de que cada divindade possui em si mesma um misto de forças polarmente opostas (Artemis é ao mesmo tempo virgem e a protetora das mulheres que dão à luz) e um outro deus ao qual está polarmente contraposta (Dionísio e Apolo).
Baseando-se nisso, a pesquisadora Paula Philippson afirma que essa estrutura é o modo geral de pensar de todo homem grego e tira ainda algumas conclusões interessantes para o tema que estamos tratando.
Segundo a especialista, na “forma polar de pensamento” os contrários não são somente indissolúveis, mas também logicamente condicionados pela oposição que existe entre eles, de modo que se deixássemos de lado um dos polos, o outro perderia seu próprio sentido.
Com isso em mente, entendemos que a relação “bipolarista” do Uno e da Díade não permite que pensamos que se tratam de “duas” realidades separadas que simplesmente “se mesclam”, mas de Princípios da realidade mutuamente condicionados que se separados perdem totalmente o sentido.
De certa forma, poderíamos dizer que com sua Teoria dos Princípios, Platão seja talvez o mais elevado representante do modo típico de pensar dos gregos.
Com o que então já foi dito até agora sobre os Princípios Supremos de Platão, penso que podemos dar mais alguns passos.

Já sabemos que deles derivam as Formas, porem não somente.
Em primeiro lugar, existe realidades muito próximas das Formas que também derivam da ação do Uno sobre a Díade, são elas os Números Ideias sobre os quais logo falaremos.
Depois, parece que Platão não utiliza os Princípios Supremos para explicar somente o Inteligível, mas também a realidade como um todo.
Segundo a Tradição Indireta, o filósofo categoriza o real partindo de que todas as coisas devem remeter ao Uno e à Díade.
E isso veremos melhor agora…

Para o autor, podemos dividir o real em dois grupos de seres: aqueles que são por si e aquele que estão sempre em relação com outro.
Esse último grupo, por sua vez, se subdivide em dois: “Opostos Contrários” e “Correlativos”.
Ao fim, temos 3 grupos de seres e cada um desses grupos terá um modo de referir-se aos Princípios.
Antes porem que digamos como isso funciona, algo deve ficar claro desde já.
Em todos os seres está sempre a atuação dos dois Princípios, de modo que mesmo que digamos que um grupo está baixo determinado Princípio, isso não significa não depende em nada do outro, mas somente que prevalece aquele e não este.
Voltando então aos grupos de seres, temos o seguinte:
“Por Si mesmos” – Prevalece o Uno
“Contrários Opostos” – Em alguns prevalece o Uno e em outros a Díade.
“Correlativos” – Prevalece a Díade
O grupo dos “Por Si mesmos”, por prevalecer neles a ação do Uno, estão constituídos de todos os seres que são totalmente definidos e determinados, quer dizer, que são cada um deles uma unidade estruturalmente independente da outra.
Dizemos então que estão baixo o género na “Unidade”.
Exemplos seriam homem, cachorro, água, árvore, tira etc.
Cada um dos seres citados é totalmente independente, quer dizer não possuem nenhum outro ser com o qual estão sempre em relação.
Isso, entretanto, não é assim nos seguintes grupos.
Se o primeiro grupo está composto de unidades determinadas, esses outros dois estão compostos de pares de seres que dizem respeito um ao outro, porem tendo essa mutua relação marcada por algumas características específicas de cada um dos grupos.
O que chamamos de “Contrários Opostos” são tais que os elementos de cada um dos pares desse grupo não podem nem existir nem deixar de existir simultaneamente, quer dizer, o desaparecimento de um implica necessariamente o produzir-se do outro.
Exemplos seriam pares como Igual-e-Desigual, Morte-e-Vida, Imóvel-e-Movido etc.
Por outro lado, com o “Correlativos” é diferente, pois são marcados pelo fato de que necessariamente produzem-se juntos e desaparecem juntos, quer dizer, falar de um deles é necessariamente considerar o outro.
Exemplos desse grupo seriam pares como Grande-e-Pequeno; Alto-e-Baixo; Direito-e-Esquerdo etc.
É ainda interessante observarmos que Platão está chamando essas realidades de seres, afinal, não é bem assim que pensamos hoje em dia.
Pois bem, os pares do grupo dos “Contrários Opostos” estão baixo o género no “Igual-e-Desigual”.
Vemos então que um dos pares do qual o grupo está constituído (Igual-e-Desigual) dá nome a todo o género, algo que pode causar confusão, mas que é mais comum do que se imagina (por exemplo o fato de “homem” ser o nome genérico do conjunto de homens e mulheres).
Esse género possui dois nomes pelo fato de que cada um diz respeito a um elemento do par, de modo que em todos os pares de “Contrários Opostos” haverá um elemento que diz respeito ao “Igual” e outro ao “Desigual”.
O critério para saber a que coluna pertence cada elemento é se ele está ou não submetido ao “mais-ou-menos”, de modo que os que assim estiverem estão da série dos “Desiguais” e os que não na dos “Iguais”.
Por exemplo, aquilo que é “Imóvel” não pode ser “mais-ou-menos” imóvel, quer dizer, é sempre igualmente imóvel.
Já o “Movido” aceita essa gradação de “mais-ou-menos”, afinal pode haver a desigualdade de ser mais movido agora e menos movido depois.
Como o Uno é a melhor representação do que é sempre igual, se pode concluir que nos que estão baixo o género do “Igual” prevalece o Uno.
O “Desigual”, por sua vez, na medida em que implica “mais-ou-menos”, também supõe o Defeito e o Excesso, quer dizer, a Indeterminação, de modo que nos elementos que estão baixo o género do “Desigual” prevalece a Díade.
Por último, temos o grupo dos “Correlativos”, onde prevalece sempre a Díade.
Pelo fato da relação entre os pares desse grupo ser totalmente carente de uma definição estrutural, temos que todos os elementos do grupo estão submetidos ao “mais-ou-menos”, quer dizer, podem crescer ou decrescer independentemente um do outro.
Isso significa que todos os elementos estão baixo o género do “Desigual”, quer dizer, do Defeito e do Excesso, de maneira que prevalece em cada um deles a Díade.
Devemos levar ainda em conta sobre essa divisão que Platão faz da realidade não está fundamentada somente ema distinções lógicas e abstratas, mas no próprio Ser das coisas, ou melhor, no conhecimento acerca da estrutura do Ser.
Além dessa proposta de categorização do real ajudar a esclarecer algo sobre o que falamos dobre os Princípios, também será um dos fundamentos e inspirações aos quais Aristoteles buscaria para desenvolver sua própria doutrina de Categorias.

Além de utilizar os Princípios Supremos para explicar as Formas e as categorias da realidade, Platão também os utilizaria para falar do que já anunciamos como “Números Ideais”.
Antes de mais nada, devemos ter em mente que não estaremos nos referindo aos números matemáticos (2, 3, 4 etc), mas aos Números Metafísicos, quer dizer, a causa e fundamento dos próprios números matemáticos.
Assim, quando nos referirmos aos “Números Ideais”, simplesmente vamos dizer Números (começando com letra maiúscula).
Outro problema na doutrina platônica sobre os Números é que existe uma redução das Formas aos Números que, por nem sempre é bem entendida, pede que expliquemos um pouco sobre a relação que existe entre Números e Formas.
Em primeira lugar, a relação que Platão admite entre essas duas realidades não tem nada a ver com aquela “mística numérica” dos pitagóricos que identificava cada coisa da realidade com um número específico.
Numerologia.jpgPara, contudo entendermos como verdadeiramente se dava essa relação, devemos entrar um pouco na cabeça do homem grego daquela época.
Para o típico cidadão grego, os números são, antes de mais nada, pensados como relações de grandeza ou frações de grandezas, quer dizer, como proporção.
Nesse sentido, é extremamente comum olhar para relações e traduzi-las por estruturas numéricas ou proporções.
Homo Quadratus.jpgExemplo disso seriam os famosos cânones gregos no que dizia respeito à produção artística, sendo sem dúvida um dos mais famosos o chamado Homo Quadratus (que ganha fama com Leonardo Da Vinci).
Enfim, o fato é que os gregos eram capazes para olhar para obras de artes plástica e enxergar em suas figuras e formatos uma série de relações numéricas e proporções que para o homem moderno talvez imperceptível (a menos que o sujeito estude arte, mas ai não vale).
Ora, tal como isso modo de ver as coisas funcionava para as figuras e formatos das coisas sensíveis, não é de se estranhar que Platão, ao pensar nas Formas, também concluísse que por detrás delas existiria algo parecido.
De fato, se pensarmos que existe um Multiplicidade de Formas, isso supõe que elas são muitas, diferentes e hierarquicamente organizadas.
Essa hierarquia das Formas pode ser entendida como a “posição” de uma Forma em relação à outra segundo sua maior ou menor Universalidade e a maneira mais ou menos complexa pela qual se relaciona com as demais Formas.
Nesse sentido, falamos que entre as Formas existe como que um “trama de relações”.
Ora, se os gregos antigos (e ai está incluído Platão) entendia os número como relação e proporção, é quase óbvio que o autor tentaria traduzir a “trama de relações” das Formas por uma relação numérica.
Assim, isso que chamam de “redução” das Formas à Números não é nada mais do que outra elevada expressão do espírito grego com a qual nos brinda Platão em suas Doutrinas-Não-Escritas.
Outro ponto interessante é que segundo muitos estudiosos, os Números representariam de maneira paradigmática a estrutura sintética de Unidade-na-Multiplicidade, afinal, mais do que qualquer Forma ou coisa singular, eles derivam de uma limitação (ação do Uno) sobre uma multiplicidade ilimitada de grande-e-pequeno (Díade), motivo pelo qual se afirma que ele foram os primeiros gerados e que a realidade possui uma estrutura numérica.
Por último, no que diz respeito aos números em Platão, vejamos brevemente em que consistem os números matemáticos, pois, ainda que não estejam equiparados às Formas tais como os Número Metafísicos, tão pouco podem ser considerados como realidades sensíveis.
Basicamente, o filósofo diz que os número matemático (este com os quais trabalhamos na escola) estão numa situação intermediária entre sensível e Inteligível.
Isso, incluso, testemunha o Aristóteles.
O que acontece é ao mesmo tempo em que eles são eternos e imóveis (algo que os aproxima das Formas) também múltiplos segundo a mesma espécie (algo típico das coisas singulares).
Pluralidade de números.pngAssim, difere da realidade sensível por claramente serem inteligíveis, porem também diferem da realidade das Formas e dos Números Metafísicos pelo fato de que as operações aritméticas implicas o uso de muitos números iguais.
Se então quisermos falar isso com um vocabulário mais rebuscado, podemos falar de entes sensíveis (coisas singulares), entes inteligíveis (Formas e Números Metafísicos) e entes matemáticos (realidades intermediárias entre o sensível e o inteligível).
Essa situação intermediária dos chamados entes matemático justifica o porquê de, na proposta pedagógica de Platão, o autor ter a matemática como uma preparação para a Dialética (que é propriamente o conhecimento sobre as realidades inteligíveis), pois seria um nível de conhecimento justamente intermediários entre este e o o conhecimento sensível.
Ao fim, temos que Platão não pretendia matematizar a Metafísica, mas fundamentar metafisicamente a matemática.
E com isso parece que já falamos o suficiente sobre a Teoria dos Princípios de Platão.
Admito que não se trata de um tema fácil e, talvez, você não entenda tudo numa primeira leitura.
Isso, contudo, não é um problema, afinal, é de Platão que estamos falando.
Para então finalizarmos esse texto, vou deixar uma solução interessante que a Teoria dos Princípio apresenta para uma das passagens mais misteriosas e belas das obras de Platão.
Muitas delas estão consignadas naquele livro que pode ser considerado a “Grande Obra” do autor, isto é, a República.
[Mais pra frente vamos falar mais sobre essa obra, de modo que não vou explicar nesse texto todo o seu contexto.
Vale, porem, frisar que toda essa obra é como um paradigma da relação entre escrita e oralidade, afinal, muitas vezes vemos que Platão nem afirma nem oculta seu pensamento, mas o fala por meio de alusões, imagens e analogias.
Isso é interessante pois mostra que, por mais que ele evite escrever sobre as “coisas de maior valor”, é simplesmente impossível que fale de filosofia sem pelo menos as estar supondo]
Ao fim de sua defesa à Justiça (sim, nessa obra o autor terá que defender a noção da Justiça como algo bom mediante alguns ataques que ela recebeu), o autor afirma que para compreender a fundo a natureza dessa virtude seria necessário alcançar a verdadeira “justa medida”, algo que podemos entender como uma “Medida Suprema”.
Todavia, para alcançar a “Medida Suprema”, faz falta alcançar um tal “Conhecimento Máximo” que ele diz ser o conhecimento sobre a “Idéia (ou Forma) do Bem” que seria o que faz com que todas as virtudes (incluindo a Justiça) sejam úteis e proveitosas ao homem.
Nesse momento, o que o leito esperaria é que o autor fosse definir o que é o Bem por si e em si, porem ele não faz isso.
A primeira desculpa que o autor dá pra não fazer isso é colocar na boca de Sócrates que seus interlocutores já haviam escutado diversas vezes seu pensamento sobre esse assunto.
O problema é que se Platão não falasse nada sobre isso, o seu texto acabaria ficando sem sentido e coesão, afinal, parece que a “Ideia do Bem” está no núcleo da filosofia que o autor apresenta na República.
Dessa maneira, a solução do filosofo é prometer que falaria propriamente do Bem em outra e ocasião e que, naquele momento, falaria do “Filho” do Bem.
Obviamente Platão está introduzindo aqui uma analogia, afinal, sendo “Filho” do Bem, a realidade da qual o autor falaria deve ter algumas características herdadas de seu “Pai”.
Ora, o imagem que Platão utiliza para falar do “Filho” do Bem é o Sol, de modo que a analogia consiste entender que aquilo que o Sol era para o sensível (obviamente segundo o entendimento da época) deveria ser o Bem para o Inteligível.
Vejamos essa analogia:
A faculdade do homem de Ver (a visão) corresponde perfeitamente ao Ser visível (um outro termo seria visibilidade, mas não estou seguro se posso usar) das coisas.
Ora, a visão e o visível estão unidos pelo vínculo que se chama luz da qual a fonte é o Sol.
Dessa forma, a vista, ainda que não seja da mesma natureza do Sol recebe dele sua própria capacidade e, quando busca ver as coisas sem a presença do Sol (na escuridão) vê pouco ou quase nada.
Além disso, pelo fato da visão receber do Sol a capacidade de ver, é capaz de ver o próprio Sol (ainda que arda o olho).
Por último, o Sol não só é responsável pelo ver e ser visto, mas também pela geração, crescimento e nutrição das coisas (ideia tipicamente grega) ainda que não faça diretamente parte desse processo.
Essa relação entre Sol e visão pode ser analogamente entendida como a relação entre inteligência e Bem:
-assim como o Sol permite o ver e o ser visto, o Bem confere a verdade das coisas e permite que a inteligência conheça essa verdade;
-assim como o Sol pode ser visto, podemos também conhecer o Bem;
-assim como o Sol não é nem a visão nem a “visibilidade”, o Bem não é nem a inteligência nem a verdade;
-assim como o Sol está acima da vista e do ser visível, o Bem está acima da inteligência e da verdade;
-assim como o Sol da geração, da nutrição e do crescimento das coisas, o Bem é a causa do Ser e da essência delas, de modo que é superior tanto ao Ser quanto à essência.
Infelizmente o autor não apresenta muito mais analogias, afinal, tal como já foi dito, não parecer ter interesse de escrever sobre o Bem em si e por si.
Ao fim, Platão simplesmente apenas fala coisas sobre o Bem, mas não se preocupa em as fundamentar, quer dizer, em dar os motivos pelos quais, por exemplo, o Bem é causa do Ser e está acima dele (e olha que, em nível metafísico, falar de algo acima do Ser é forte pra caramba).
Assim, sem as Doutrinas Não Escritas simplesmente ficaríamos por aqui.
Como porem, segundo o itinerário que estamos fazendo podemos contar com elas, vamos seguir mais um pouquinho.
Parece que uma identificação do Bem com o Uno poderia explicar os porquês das afirmações de Platão, afinal, ainda que seja escassas as afirmações sobre essa identificação na Tradição Indireta, Proclo fala que o Uno de Platão é “Melius Ente” (melhor que o Ser).
O que acontece é que parece que na própria República o autor faz essa identificação, porem mais uma vez por meio de uma sutil alusão.
Apolo.jpg

Ao Fim desse discurso, Platão coloca na boca de Gláucon a seguinte frase: “Apolo! Que maravilhosa superioridade!”
Não seria errado interpretar que se trata de Platão fazendo um ato de louvor ao Sol, afinal, Apolo era um deus que tinha como carruagem o próprio Sol, porem, há algo mais a considerar.

Os pitagóricos (que Platão já havia frequentado quando escreveu a República) utilizavam justamente o nome do deus Apolo para referir-se ao Uno dele, afinal, se juntarmos a (α), que é uma partícula de negação, com polón (πολλóν), que significa muitos, temos justamente o termo “não-muitos”, ou seja, Uno. Nesse sentido, é razoável afirmar não só que Platão nos diz o nome da “Idéia do Bem”, como também que, dada a concordância entre esse nome e o testemunho da Tradição Indireta, este é uma instrumento confiável para nos aproximar das Doutrinas Não Escritas do Autor.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

Platão: Metafísica Parte 1

“De duas maneira se compreendeu e expôs a filosofia de Platão.
Por um lado, alguns preferiram tentar sistematizar sua obra a partir de alguns esquemas antigos que prevaleceram ao longo da História da Filosofia (Aristoteles, por exemplo).
Por outro lado, supondo já uma cronologia dos diálogos de Platão e a existência de uma evolução de seu pensamento, outros especialistas preferiram trabalhar cada diálogo separadamente.
As duas tentativas geraram problemas, pois, se a primeira faz com que muitas partes da obra tenham que ser ignoradas em prol da construção de um sistema, a segunda tende a ser muito dispersiva e não dificulta entender Platão em sua totalidade.
Por conta desses problemas, Reale propõe uma terceira via de estudo, onde se pretende recuperar o sistema platônico não como uma estrutura de pensamento fechada, mas como um todo orgânico onde vários conceitos e ideias são reunidos e unificados em torno de um conceito supremo.
Ademais disso, Reale também percebe que Platão foi sendo lido a partir de três perspectivas: metafísica (Academia), religiosa (neoplatonismo) e política (século XX).
Assim, a solução do autor é propor que o verdadeiro Platão não se encontra em nenhuma dessas faces individualmente, mas sim nas junção das três em torno das Doutrinas Não Escritas.
Dessa forma, o que faremos ao longo das próximas semanas é ir apresentando as três componentes do pensamento de Platão e, na medida que pareça conveniente, mostrar a relação que possivelmente possuem com as “coisas de maior valor”.
Em esse texto começaremos a tratar da componente Metafísica de seu pensamento.

Falar da Metafísica de Platão é necessariamente tocar no que chamamos de Segunda Navegação, porem, antes de chegarmos nisso, há um itinerário que vale a pena conhecermos.
Num primeiro momento temos um Platão que se encontra com a doutrina dos pré socráticos sobre a causa por trás da geração, da corrupção e do ser das coisas, problemas esses que são os mais importante do que poderíamos chamar de Metafísica (ainda que não estivesse assim formulada) nesse momento.
O problema é que Platão percebe que as soluções dadas até então para essas questões eram de caráter puramente físico, algo que ele achou insatisfatório.
Ainda com os pré socráticos, temos o encontro com a teoria da Inteligência Cósmica de Anaxágoras como um possível solução para esse problemas.
Platão concorda com esse autor de que a Inteligência é a causa de tudo, porem percebe que ele não foi capaz de justificar isso adequadamente.
Basicamente, Anaxágoras afirma uma Inteligência que é causa e ordenadora de tudo, algo que supõe afirmar que ela atua dispondo todas as coisas da melhor maneira possível.
Quando Platão escuta isso, ele espera que Anaxagoras articule estruturalmente a Inteligência com a noção de Bem, afinal, seria esse o critério pelo qual a Inteligência ordenaria as coisas (para alcançar o “mais Bem”, o melhor).
Dessa maneira, a noção de Bem seria a condição do nascer e perecer das coisas, ou seja, de todos os fenômenos.
O que acontece é que, mesmo introduzindo a noção de Inteligência, Anaxágoras acaba atribuindo o papel de causa para explicar os fenômenos do cosmos aos próprios elementos físicos (água, fogo, terra, ar etc).
Para Platão isso era absurdo, pois ainda que os elementos físicos sejam necessários para a constituição do cosmos, atuariam mais como uma condição do que como a Causa Verdadeira.
super-copVeja um exemplo:
Digamos que em uma situação de vida ou morte um policial atira em um bandido.
Seria ridículo dizer que a causa do policial ter dado o tiro foi o seu dedo que puxou o gatilho.
Na verdade, o mais coerente seria afirmar que a verdadeira causa foi a inteligência do policial que percebeu que naquela determinada situação a melhor coisa a fazer era disparar.
A conclusão é a seguinte: o dedo que puxa o gatilho, bem como toda mecânica corporal envolvida nesse ato, é sim uma condição para a ação, mas não sua verdadeira causa.
Ao fim, o que Platão percebe é que a reflexão sobre a mecânica do cosmos, ou seja, considerando só a realidade física, não é suficiente para levar ao conhecimento da Causa Verdadeira, de maneira que terá que sair do plano sensível e entrar no que tradicionalmente será chamado de supra-sensível, ou, dimensão inteligível da realidade.
Com efeito, isso será propriamente a Segunda Navegação.
Obviamente, quando Platão fala isso no Fédon, está fazendo uma metáfora.
Originalmente, Segunda Navegação é um termo naval que designa a navegação feita com a força dos remos quando não há ventos para empurrar as velas.
Platão, sendo um sujeito muito culto, percebeu aqui a possibilidade de explicar a situação de seu pensamento em relação ao pensamento dos pré socráticos.
Com o método da filosofia anterior, ou seja, com os sentidos e as sensações, Platão realizou uma Primeira Navegação na busca pelas Causas Verdadeiras.
Uma vez que ele não encontrou nessa metodologia algo que pudesse chamar de Causa
Verdadeira, ele simplesmente conclui que com os ventos do método pré socrático não poderia seguir sua busca.
segunda-navegacaoAssim, o autor diz que fará uma Segunda Navegação no sentido de que buscará outro método que o permita seguir sua jornada, ainda que se torne algo muito mais árduo e cansativo (afinal, é mais fácil navegar sendo empurrado pelo vento do que remando que nem escravo).
Esse método não deve fundar-se nos sentidos (que já se mostraram insuficientes), mas nos pensamentos e postulados.
A partir disso o autor poderá sair do âmbito físico e adentrar na dimensão supra-sensível da realidade.Em suma, o que chamamos de Segunda Navegação é o descobrimento de Platão das realidades inteligíveis que ele considerará como as Causas Verdadeiras, de modo que as coisas físicas não serão mais que meio pelos quais essas Causas se realizam.Uma vez explicado isso, podemos finalmente entrar no verdadeiro assunto do texto de hoje, a saber, a Metafísica de Platão.

Propriamente, a Metafísica Platônica é a Teoria das Ideias e a Teoria dos Princípios.
Talvez você já tenha ouvido falar da primeira, mas dificilmente escutou algo sobre a segunda.
O que acontece é que a Teoria das Ideias de Platão é a parte de sua Metafísica que está exposta de maneira clara em suas obras, enquanto que a Teoria dos Princípios se encontra naquilo que chamamos de Doutrinas Não Escritas.
Sendo assim, vamos nos centrar primeiro na Teoria das Ideias.
[Um Breve Esclarecimento]
Mesmo que popularmente seja conhecida assim, o mais correto seria falar de uma Teoria das Formas.
O problema, como na maioria das vezes, está nas traduções do grego para as demais línguas.
Ideia é a tradução das palavras gregas Idéa e Eidos.
Ainda que pareça quase uma transliteração, o fato é que o conceito de Ideia que temos hoje (pensamento, representação mental etc) é totalmente diferente do que Platão queria dizer quando falava de Idéa ou Eidos.
Melancolia.jpgPor exemplo, outro dia eu estava em casa melancólico porque sabia que ia pra longe e não poderia mais estar ajudando no Curso de Férias.Dai, enquanto estava sentado no sofá olhando pro ventilador, tive uma ideia para poder continuar envolvido com esse trabalho – “Vou fazer um Blog para explicar coisas que não conseguimos explicar nas aulas” – pois bem, obviamente não é desse tipo de ideia que o filósofo estava tratando.
Além disso, Idéa e Eidos são palavras que vêm do verbo grego Idein, que significa “ver”, de modo que originalmente (antes de Platão) eram utilizados para falar da forma visível das coisas.
Platão, entretanto, justamente por conta da Segunda Navegação, utiliza esses termos para referir-se ao que chamamos de Forma Interior da Coisa, quer dizer, sua estrutura metafísica puramente inteligível.
Se então os olhos são capazes de captar as Formas físicas, a Inteligência dará conta das Formas Inteligíveis.
Assim, a partir de agora eu vou abandonar o termo ideia e utilizar apenas o termo Forma.
[Finalmente, a Teoria das Formas]

A obra que normalmente se utiliza como referência para conhecer a Teoria das Formas de Platão é o Fédon, porem, em praticamente todas as outras obras, incluso as ditas obras da juventude, poderemos encontrar algo disso pelo menos de modo implícito.
Vejamos então algumas características disso que Platão chama de Formas:
a) Inteligibilidade: quer dizer que as Formas só podem ser captada pelo raciocínio, de modo que por isso que as chamamos de Formas Inteligíveis.
Em esto sentido, as Formas Inteligíveis são contrapostas às coisas sensíveis como se fossem uma outra dimensão da mesma realidade que só pode ser alcançada pela inteligência.
Com isso, vemos pela primeira vez na História da Filosofia a distinção clara entre plano metafísico e plano físico, algo que em muitos manuais utilizados em nossas escolas aparece como a distinção entre Mundo Sensível e Mundo Inteligível.
Particularmente não me parece apropriado essa terminologia de mundos, afinal, pode dar a entender que Platão esteja supondo que existe uma espécie de “mundo paralelo” onde vivem as ideias.
b) Incorporeidade: é uma característica que se desenvolve da anterior, isto é, do fato das Formas serem inteligíveis.
Os sentidos, ainda que em alguns casos precisem das ferramentas adequadas (como um microscópio, por exemplo), são sempre capazes de captar o corpóreo.
Como as Formas, por serem inteligíveis, não podem ser alcançadas pelos sentidos, supõe-se naturalmente que se tratam de realidades incorpóreas.
O interessante é que a noção de incorpóreo que temos até hoje é mais ou menos a mesma que nos apresenta Platão.
Isso, contudo, antes de ser uma vantagem nesse estudo, pode acabar configurando-se num grande problema.
O que acontece é que, antes de Platão, outros filósofos utilizaram o mesmo termo, porem com um sentido totalmente diferente.
Isso quer dizer que devemos tomar muito cuidado para não entendermos o uso de “incorpóreo” na filosofia pré socrática segundo as categorias platônicas que esse conceito assumiu, afinal, poderíamos acabar afirmando que já naquele tempo existia uma reflexão metafísica tal como apareceu em Platão, e isso estaria errado.
De modo geral, quando os filósofos anteriores falavam de algo incorpóreo, queriam designar apenas a ausência de uma forma (em sentido físico) determinada.
Para Platão não é assim, pois ainda que diga que as Formas são incorpóreas, ele as entende como realidades muito bem determinadas, e mais, como capaz de serem Causa de determinação das diversas coisas na realidade (porem sobre isso falaremos logo).
c) Perseidade: de maneira geral, é o princípio de que as Formas são por si e em si.
Platão apresenta isso no Fédon como o ponto de partida de uma das últimas reflexões de Sócrates com seus discípulos.
O autor estabelece que há o Belo em si e por si, a Bondade em si e por si, a Grandeza em si e por si etc.
Ora, essas realidades em si são justamente as Formas do Belo, da Bondade e da Grandeza.
Estas Formas, por sua vez, terão alguma relação (que também explicaremos mais pra frente) com todas as coisas sensíveis que forem belas, boas ou grandes.
E isso será extendido a toda a realidade física, de modo que da mesma maneira que temos pedras singulares no plano físico, na esfera supra-sensível encontramos a Pedra em si, quer dizer, a realidade inteligível e incorpórea que podemos chamar de Forma da Pedra.
Além do mais, o fato das Formas possuírem perseidade dá a elas solidez e estabilidade, de maneira que podemos dizer que são realidades objetivas, ou seja, que não dependem da subjetividade de ninguém.
d) Imutabilidade: basicamente é o princípio de que as Formas não podem estar em nenhuma maneira baixo o Vir-a-Ser e vai surgir como uma reação a um tipo de relativismo de origem heraclitiano.
A partir do pensamento de Heráclito sobre a mobilidade radical e constante do cosmos, alguns de seus seguidores afirmaram a impossibilidade do conhecimento verdadeiro das coisas.
Veja bem, se tudo está em constante mudança, então as realidades físicas e singulares são uma grande multiplicidade de estados moveis, de modo que no há um conhecimento objetivo sobre essas coisas, mas somente relativo ao estado em que estão ( e que no instante seguinte deixarão de estar).
Platão até afirma que é correto afirmar que existe mudança e movimento na realidade sensível, porem nega que se possa aplicar esse fenômeno na realidade das Formas justamente por serem em si e por si.
Pintura estragada.jpgSabemos que uma pintura que é bela possa se tornar feia por um série de motivos: porque foi borrada pela água da chuva, porque cai lama nela, porque perdeu a vivacidade de suas coras pela ação do tempo etc.
Isso, contudo, não indica uma mudança na Forma do Belo, mas sim nos meios físicos pelos quais a pintura tinha relação com o Belo em si.
Assim, as coisas belas podem tornar-se feias, mas justamente por serem realidade sensíveis e causadas; já o Belo em Si, na mediada em que é a Causa Verdadeira da beleza das coisas, não poderia tornar-se feia sem que, com isso, desaparecesse todo a beleza do mundo, afinal, são perdemos a Causa, consequentemente deixa de existir o efeito.
Para que as Formas sejam realmente a Causa Verdadeira das coisas, é necessários que a solidez e estabilidade que possuem por serem realidades em si e por si nos leve a concluir que não pode estar baixo o fluxo do movimento, pois de outra forma, não seria realmente estáveis e sólidas, quer dizer, não seriam a Causa Verdadeira.
e) Ser no sentido pleno: em poucas palavras, o filósofo está dizendo que as Formas são o Ser que é verdadeiramente, ou seja, o ser das coisas em sentido absoluto.
Essa característica leva em conta todas as demais para afirmar que aquilo que anteriormente alguns pré socráticos atribuíram ao Ser absoluto deve ser então atribuído às Formas.
Com isso, a distinção que antes tínhamos levantado entre plano físico e plano metafísico agora também pode ser entendida como plano do vir-a-Ser e plano do Ser.
A esfera do vir-a-Ser é a dimensão sensível da realidade, aquele que outrora Heráclito atribui a todo o Ser; por outro lado, a esfera do Ser é a dimensão inteligível da realidade, aquela que Parmenides havia atribuído a todo real.
Com isso, Platão é capaz de resolver o dilema entre Heráclito e Parmenides, pois percebe que nenhum dos dois deu conta da realidade como um todo, mas cada um de uma dimensão dela.
Desse modo, dizemos que a análise heraclitiana está correta no que diz respeito à realidade sensível, enquanto que de igual maneira está acertado o pensamento de Parmenides no que diz respeito à realidade inteligível.
Ao fim, poderíamos considerar o Ser de Parmenides como a Causa e o vir-a-Ser de Heráclito como o Causado (obviamente com alguns matizes que não estão presentes originalmente nesses autores).

Depois de termos vistos todas essas características das Formas, podemos dizer que falta acrescentar uma mais, porem faremos isso separadamente pelo fato de que está última é de longe a mais importante.
Se trata da Unidade das Formas.
Talvez você que esteja lendo esse texto possa ter tido a impressão de que até agora estávamos simplesmente dando informação sobre as Formas sem justificar muito, afinal, além de Platão ter simplesmente “estabelecido como um pressuposto” que elas devem ser em si e por si, também não foi justificado que realidade inteligível seja de fato real, mas apenas dissemos que Platão “descobriu” essa realidade e a “considerou” como Causa Verdadeira.
Isso, contudo, será um pouco melhor fundamentado na medida em que explicarmos a Unidade das Formas.
Para o autor, as Formas devem ser consideradas antes de qualquer coisa como a Unidade que explica as coisas sensíveis que se relacionam com ela, ou seja, que unificam a multiplicidade de seres singulares.
Alguns estudiosos do platonismo, a partir disso, desenvolveram uma argumentação para a existência real das Formas chamada de “prova que deriva da unidade do múltiplo”.
Vejamos como Reale apresenta essa argumentação:
Primeiro devemos ter em mente que existem muitos homens e que cada um deles é verdadeiramente homem.
Assim, deve existir algo que faça com que cada homem (individualmente) e com que todos os homens(como um todo) sejam homens e não outra coisa.
Esse algo não pode ser idêntico a algum dos seres singulares, pois, se o atribuíssemos a um determinado indivíduo entre os homens, cairíamos em uma das duas conclusões:
-os demais não seriam homens por não serem aquele indivíduo;
-os homens não seriam diferentes por serem todos o mesmo indivíduo.
Ora, as duas hipóteses são absurdas.
Assim, é necessário que haja algo separado dos homens individuais que se possa dizer de modo idêntico de todos eles.
Em outras palavras, se conclui que deve haver uma Unidade que transcenda a multiplicidade afim de a unificar.
Essa Unidade necessária para explicar a multiplicidade das coisas é o que Platão chama de Formas.
Tendo isso em mente, entendemos, por exemplo, o porquê de termos dito anteriormente que as Formas são a Causa de determinação das realidades sensíveis e singulares.
teoria-das-ideiasUm cavalo não é uma cavalo por suas características física (tamanho, resistência, formato etc), pois dessa forma os outros cavalos (que não são idênticos a ele em tamanho, resistência, formato etc) não seriam cavalos.
Em realidade, o que faz com que um cavalo seja um cavalo é a Unidade transcendente que Platão chama Forma do Cavalo.
Em suma, a Forma é um princípio de unidade inteligível e incorpóreo que explica e determina a realidade singular múltipla, de modo que pode ser considerada a Causa Verdadeira das coisas na medida em que é o Ser Verdadeiro delas que, em meio a todo vir-a-Ser, permanece o mesmo de maneira sólida e estável.

Imagino então que, com tudo que dissemos, já possuímos uma noção um pouco mais refinada de Formas.
Isso, entretanto, não impede que muitos continuem achando que é uma teoria um pouco absurda.
O que acontece é que o motivo que leva a essa impressão em alguns leitores não está tanto na Teoria das Formas em si mesma, mas em algumas conclusões que, por conta muitas vezes de uma má interpretação, tiramos dela.
Talvez, a pior de todas elas seja a afirmação de que existe na filosofia de Platão um dualismo entre sensível e Inteligível quando, na verdade, falamos de uma dualidade.
Veja bem, as palavras são parecidas, mas não são iguais.
De maneira geral, o termo dualismo diz respeito a um pensamento onde existem duas realidades distintas e separadas que se sobrepõem uma à outra.
Dualidade, contudo, costuma indicar uma mesma realidade que, por sua vez, é composta por duas dimensões distintas.
Isso vai ficar um pouco mais claro quando vermos a Metafísica de Aristoteles, pois esse autor afronta diretamente esse problema, porem podemos pensar que isso já está presente em Platão.
Dois Mundos.jpgOra, a má interpretação que costuma surgir a partir disso é a de que a distinção entre sensível e inteligível supõe uma separação, de modo que parece que Platão está defendendo a existência de dois mundo separados, o inteligível e o sensível.
O que acontece é que isso está errado, pois, ainda que você tenha aprendido isso na escola, Platão não afirma estritamente a existência de um Mundo das Ideias que está separado do nosso mundo.
A Teoria das Formas não apresenta um dualismo, mas uma dualidade, ou seja, o que Platão diz é que sensível e inteligível são duas dimensões de uma mesma realidade.
Para que isso fique claro, devemos entender um pouco as noções de Transcendência e Imanência das Formas em relação às coisas físicas.
Platão afirma que as Formas tem tanto algo de imanência quanto de transcendência, algo que parece contraditório, afinal, algo não pode ser imanente e transcendentes ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Entretanto, tal contradição desaparece se entendermos que as Formas são imanentes e transcendentes justamente sob aspectos distintos, de modo que o autor incluso afirma que a transcendência delas é a razão de ser de sua imanência.
Quando Platão afirma que as Formas transcendem ao sensível, o diz enquanto que são Causas Metaempíricas (além da possibilidade de serem conhecidas pelos sentidos).
Isso deve ser assim pelo fato de que, como já falamos antes, dentro das categorias empíricas (sensíveis e físicas) não foi possível encontrar a Causa verdadeira da realidade, quer dizer, da a razão de seu Ser.
E isso também podemos ver nos dias de hoje, afinal, frequentemente temos notícias de pseudo-cientistas que pretendente explicar a razão de Ser do universo apenas por meio de causas mecânicas e empíricas.
Tais tentativas, contudo, sempre falham miseravelmente e deformam a verdadeira ciência na medida em que vão contra seu próprio estatuto.
O que acontece é que não vou discutir isso agora, pois desde os primeiros textos faleis que não ia entrar (ainda) nas dificuldades que existem entre filosofia e pseudo-ciência.
Ao fim, com a transcendência das Formas Platão não quer dizer elas existem em um mundo separado, mas que só podemos explicar o sensível a partir do supra-sensível (corruptível com o incorruptível, relativo com absoluto, móvel com imóvel, múltiplo com Uno).
E além disso tudo, os primeiros aspectos das Formas que Platão aponta são justamente o de sua imanência, pois o autor afirma que elas são aquilo que, nas coisas sensíveis, permanecem idênticas, fazem com que sejam elas mesmas, as fixam em suas naturezas, permitem que sejam inteligíveis, em suma, fundamentam sua estrutura ontológica imanente.
Por último, agora que sabemos como não deve ser entendida a relação entre Formas e coisas sensíveis, devemos perguntarmos sobre como é essa relação.
Ora, ao longe de seus escritos, Platão fala dessa relação das seguintes maneiras: mimese ou imitação; métexis ou participação; koinonía ou comunhão; parusia ou presença.
Apesar disso, no Fédon, o autor diz que todos esses termos devem se entendidos apenas como propostas mais simples que ele não pretendia desenvolver.
E ele fala isso justamente pelo fato de que o desenvolvimento disso já seria chegar muito perto das “coisas mais importantes”, algo sobre o qual ele não queria escrever.
Assim, parecemos que chegamos ao limite de informações possíveis de tirar da obra de Platão sobre sua Metafísica, pois, ainda que seja possível um grande aprofundamento sobre o que foi dito acima, não podemos, todavia, avançar para novos horizontes.
Assim, só será possível que continuemos nosso estudo sobre a Metafísica platônica se acudirmos à tradição indireta de Platão, quer dizer, às Doutrinas Não Escritas.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

 

Platão – Vida e Obras (Parte 1)

E depois de mais ou menos 1 ano de textos sobre a História da Filosofia, finalmente entraremos em Platão, um dos maiores filósofos de todos os tempos.
Sua influência na história da filosofia foi absurda, de modo que Whitehead chega a dizer que toda a filosofia ocidental pode ser considerada como uma série de notas de rodapé as suas obras.
Apesar de um pouco exagerado, o fato é que um estudo mais pormenorizado de seu pensamento é fundamental para qualquer um que se interesse por filosofia.

1- Vida de Platão
Antes de apresentarmos alguns pontos propedêuticos para então entrarmos na filosofia platônica, vale a pena conhecer um pouco sobre a vida desse grande filósofo.
Costas largasPlatão nasceu em 427 a.C. e seu nome de verdade era Aristócles, como seu avô.
Na verdade, Platão é um apelido que recebeu de seu professor de ginástica, Aristo, por conta de seu avantajado vigor físico (seria então algo como costas-largas)
Outra teoria para esse apelido seria pelo fato de ter a cara larga, ou ainda, pela amplidão de seu estilo.
Ao fim, tudo isso remete ao grego plátos (πλάτος) que tem a ver com amplitude, largura, extensão etc.
Arilton, seu pai, tinha orgulho de dizer que entre seus ancestrais estava o Rei Crodo (o último rei de Atenas) e, alem disso, sua mãe Peticione era descendente de Sólon, o grande legislador de Atenas.
Se ve que a nobreza da familia de Platão não dependia somente da riqueza que possuíam, mas sobre tudo de sua ascendência.
Além de seus pais, a família de Platão esta constituída por dois irmãos, Glaucon e Adimanto (que aparecem na República), e uma irmã chamada Potone. Quando seu pai morre, sua mãe se casa com Pirilampo e então nasce seu meio irmão Antifón que é um dos personagens do Parmenides.

Além de sempre ter sido muito inteligente, Platão, como todo jovem rico, recebeu uma exímia educação (física, política e intelectual). Sabemos por Diógenes Laercio que chegou a estudar pintura e escrever poemas e tragédias (que mais tarde simplesmente queimou). Chegou a frequentar a Crátilo (que mais tarde será um personagem que dará título a uma de seus obras), porem se pode imaginar que passou também por outros mestres tendo em vista tornar-se um bom político. Se pode dizer que em Platão está a  síntese do necessário para ser um político bem sucedido e um cidadão grego exemplar.

Aos 20 anos de idade começou a frequentar Sócrates, porem se pode imaginar que já o conhecia antes tendo em vista que seu tio, Carmides, já se relacionava com o filósofo.
Como muitos outros jovens da época, Platão passou a frequentar a Sócrates não tanto por sua filosofia em si, mas para através dela se preparar melhor para a vida política. O que acontece é que alguns acontecimentos vão mudar totalmente o rumo para o qual estava caminhando a vida de Platão. De um jovem preparando-se para a política acabará totalmente metido na filosofia.
Eis o que passou…
Em 404 a.C. começou na cidade de Atenas o que chamamos de Governo dos 30 Tiranos e dois parentes de Platão, Carmides e Cárdias, tinham funções de destaque nesse novo governo oligárquico.
Nessa época, é provável que Platão tivesse tido a oportunidade de se envolver mais com a política, porem deve ter sido uma desagradável testemunhar as violências cometidas durante esses tempo. Um exemplo foi a ordem que deram a Sócrates ir junto com uns outros tantos até a casa de um sujeito para o matar. Esse desgosto político, contudo, teve seu cume em 399 a.C. por conta da condenação de Sócrates à morte por Cicuta por parte dos democratas que haviam retomado o poder. Por motivo de uma doença se diz que Platão nem mesmo foi capaz de estar no momento da condenação, porem é seguro que isso marcou sua vida e sua relação com a política de Atenas. A partir desse momento, Platão não só se afastou de vez de qualquer militância política, mas também desenvolveu (ou segundo alguns fortaleceu) um certo desprezo pela democracia ateniense.

Ele e outros socráticos, talvez para evitar perseguições,  saíram de Atenas e foram para Megara, onde não ficaram muito tempo. Logo começou a realizar sucessivas viagens para estar com um grande número de pensadores e filósofos. Sem muita segurança sabemos de uma viagem para Cirene para estar com Teodoro, o matemático; e outra para o Egito para encontrar os chamados profetas.
Dionísio I.jpgCom segurança, contudo, sua Carta VII fala que em 388 a.C., por volta dos quarenta anos, Platão foi à Italia onde esteve com os pitagóricos e, posteriormente, tendo ido a Sicília para ver seus vulcões, foi convidado para viver na corte de Dionísio I, tirano de Siracusa.
Durante esse tempo teve problemas tanto com o tirano quanto com sua corte, porem criou um forte vínculo de amizade com Díon, o cunhado de Dionísio I.
Platão acreditou ter encontrado nele um bom discípulo que poderia se converter no que ele chamava de Rei Filósofo (em breve trataremos disso). O problema é que, por conta dos problemas com Dionísio, Platão foi mandado sob os cuidados de  Polis, um embaixador laucedoniano, para Egina, uma cidade que estava em guerra contra Atenas, onde foi feito escravo.
Não sabemos ao certo se foi vendido com escravo por Dionísio I ou simplesmente foi preso com escravo por ser ateniense, porem ao fim será salvo por Anicérides de Cirene e volta a sua cidade natal.

Chegando em Atenas, Platão compra um ginásio num parque dedicado ao herói Academo e ai funda sua Academia que rapidamente atraiu muito jovens e homens ilustres. Em alguns casos, escolas inteiras se transladaram para a Academia de Platão, como por exemplo a escola de matemática de Eudoxo. Além de filosofia, a Academia dava conta de ensinar outras ciências como as matemáticas, a astronomia, ciências físicas, botânica etc. Todo esse programa de estudos culminava então na filosofia.

Em 367 a.C., Platão vai mais uma vez para Sicília a pedido de Díon, pois Dionísio I havia morrido e seu filho, Dionísio II, era o novo tirano. Díon achava que o novo governante poderia favorecer melhor o objetivo de Platão de fazer uma boa cidade, porem ele se mostrou pior que seu pai. Dionísio II exilou a Díon e manteve Platão praticamente como um prisioneiro até que, por conta de estar ocupado com um guerra, acabou deixando que ele voltasse para Atenas.

Em 361 a.C., Díon, com esperança de poder voltar de seu exílio, convence a Platão de voltar mais uma vez para Sicília, uma vez que Dionísio queria mais uma vez o filósofo na corte. Platão, pensando que o tirano mudaria suas atitudes, aceita o convite, mas isso foi um grande erro, pois dessa vez chegou a correr risco de vida. Sequer se pode imaginar o que seria de Platão sem a ajuda e intervenção de Arquita de Tarentos, um filósofo pitagórico amigo de Platão. Em 360 a.C. Platão volta para Atenas e ai fica na direção da Academia até sua morte em 340 a.C. Quanto a Díon, em 357 a.C. consegue tomar o poder, porem é morto 4 anos depois.

Visto então algo da vida de Platão, vejamos suas obras.
A primeira coisa reconfortante sobre o autor que podemos dizer é que não existe aqui aquela situação de obras perdidas que tínhamos entre os pré socráticos, ou seja, todas as obras platônicas da qual temos notícias ou referências chegaram até nós.
Apesar disso, não se sabe bem a cronologia dessas obras uma vez que não vieram datadas.
Por conta dessa situação, muitos especialistas apresentaram diversas propostas sobre a ordem segundo a qual Platão escreveu e publicou seus diálogos, de modo que, ainda que existam propostas mais populares ou razoáveis, estamos longe de qualquer tipo de unanimidade.
Apesar disso, podemos sim apresentar algo sobre a cronologia dos escritos platônicos, porem ante disso faz falta entendermos um pouco melhor a lugar que têm o texto escritos no pensamento do autor…

2- Textos escritos e tradição oral.
Entre XVII d.C. e XIX d.C., houve uma tendência de considerar as obras de Platão como suficientes para o entendimento de toda a filosofia do autor. Isso quer dizer que se acreditava ser possível entender todo o pensamento de Platão sem ajuda de nenhum outra fonte além de suas próprias obras. Esse modelo se sustentava no seguinte raciocínio:
-premissa 1: o texto escrito é a expressão mais plena do pensamento de qualquer autor;
-premissa 2: temos todos os escritos de Platão;
-conclusão: por meio dos escritos que possuímos de Platão podemos conhecer seguramente todo o seu pensamento.
Apesar de parecer uma proposta razoável, o fato é que parte dos estudiosos do platonismo atuais a consideram incorreta.
Há duas obras de Platão (Fedro e Carta VII) que colocam justamente a primeira premissa em cheque, ou seja, que parecem indicar que o próprio autor não considerava o texto escrito como a melhor e principal maneira de expressar o pensamento filosófico.
Platão Tak Show.jpgNo Fédro, Platão da preferencia ao discurso oral por cima do discurso escrito. Pretende indicar que “as coisas de maior valor” para a reflexão filosófica não devem ser postas por escritos, mas reservadas ao discurso oral. Dentro desse mesmo raciocínio diz que não é verdadeiro filósofo aquele que não possui nenhum conhecimento que seja melhor que seus próprios escritos. Ao fim, as coisas escritos seriam como “as coisas de menor valor” que serviriam apenas como um gatilho para a memória do sujeito que já possui o conhecimento das “coisas de maior valor”.
Claro que, como já havia apontado Nietzsche, Platão fala isso no Fédro supondo a existência de sua Academia, o lugar onde se daria o discurso oral que poderia fazer com que determinado sujeito alcançasse o conhecimento sobre aquilo de “maior valor”.

Dito isso, pode ser que alguém se pergunte o que são essas coisas que Platão considera como as de “maior valor”. Já sabemos que Platão disse que não escreveria sobre elas, de modo que não devemos esperar que estejam listadas e explicadas em alguma de suas obras. Apesar disso, a Carta VII nos dá algumas pistas.
Primeiramente devemos observar que nesse texto o autor diz explicitamente que sobre essas “coisas de maior valor” não existe nenhum texto seu nem nunca existirá. Isso é assim por ele não considerar que elas possam ser aprendidas de modo convencional, mas somente mediante uma serie de discussões entre discípulo e mestre no que ele chama de uma comunidade de vida (e mais uma vez temos Platão pressupondo sua Academia).
Apesar de rdizer que não se deve escrever sobre as “coisas de maior valor”, nessa obra Platão utiliza algumas expressões para referir-se a elas: “todo”, “o falso e verdadeiro de todo o Ser”, “as coisas mais sérias”, “Princípios Supremos de toda a Realidade” etc.

Em conclusão se pode dizer que, como aquilo que parece ser o cume da filosofia platônica não deve ser posta por escrito, está equivocada a primeira premissa (o texto escrito é a expressão mais plena do pensamento de qualquer autor), de modo que também estará a conclusão (por meio dos escritos que possuímos de Platão podemos conhecer seguramente todo seu pensamento).

Contudo, agora um leitor atento poderia então levantar o seguinte questionamento…
Mas se está tão claro nas obras platônicas que o mais importante não é o que está por escrito, então porque durante tantos anos os especialistas não consideravam isso?
Pois bem, boa pergunta!!!

Para entendermos isso, devemos entrar um pouco na cabeça do homem moderno…
Falar de Idade Moderna é falar de uma sociedade e cultura fundada sobre a escrita que, por sua vez, é entendida como o meio por excelência pelo qual se transmite toda forma de saber. Por conta dessa relação da modernidade com a escrita, a tendência da maior parte dos estudiosos do passado (com excessão de uns poucos, como Nietzsche) foi a de reduzir o valor hermenêutico dos testemunhos encontrados no Fédron e na Carta VII  e relativizar seus significados.

Se essa era a situação no século XIX a.C., nos dois últimos séculos as coisas começaram a mudar.Audiovisuais Surgiram (e ainda estão surgindo) uma serie de meio de comunicação distintos do texto escrito que são capazes de transmitir vários dos conteúdos que antes só estavam disponíveis por meio dos livros. Um exemplo seria o caso da grande quantidade de páginas que hospedam video aulas ou simplesmente a variedade de canais de youtube que ensinam desde a maneira certa de passar maquiagem até o conhecimento básico de línguas como japonês ou mandarim.
Isso não significa que o texto escrito se tornou obsoleto, mas apenas que é possível alcançar uma grande gama de conhecimentos por outros meios. Se pode dizer que o período atual pelo qual estamos passando é privilegiado por ser testemunha do encontro de duas maneiras diferentes de transmitir conhecimento.

Algo análogo, ainda que com diferenças monstruosas, também passou na época do Platão. A oralidade que até então tinha sido o eixo fundamental que sustentava a  transmissão de conhecimento dentro da cultura grega estava pouco a pouco sendo substituída pela escrita. Se pode dizer que o autor experimentou de maneira muito especial o choque dessas duas tradições, pois ainda que certamente tivesse sido exposto ao modelo cultural fundado sobre a escritura (até porque escreveu muito), foi discípulo de Sócrates que, como já vimos, nunca escreveu sua filosofia. Ainda que Platão percebesse a importância da escrita, seu mestre era um sujeito cuja a atividade pode ser pensada como um paradigma da cultura da oralidade em filosofia.

Esse choque de culturas também compõe o contexto da atividade filosófica de Platão, de  maneira que se entende como ele pode ter sido tão excelente escritos e, ao mesmo tempo, defensor da escrita como algo limitado. Desse modo, se pode resumir esse tema em alguns pontos:
-Platão dominava a arte de escrever (e isso nos prova a qualidade de seus escritos);
-Platão sabia da importância da escritura para a transmissão do conhecimento (tanto é assim que grande parte de seu pensamento filosófico se encontra em suas obras);
-Platão considerava a escritura como um meio de transmissão limitado, de modo que alguns assuntos ele simplesmente não tratava nos escritos.
Em resumo, as obras de Platão são sim uma grande via de acesso para a sua filosofia, porem, se aceitarmos que haviam temas sobre os quais ele não tratou em seus diálogos e cartas, também aceitamos que para “conhecer seguramente todo o seu pensamento” faz falta algo mais que suas obras. Esse “algo mais” é o que hoje em dia se chama de “Doutrinas Não Escritas” de Platão.

3. As Doutrinas Não Escritas;
Aqui se trata de um tema que, além de ser bastante complexo, é motivo de muitas discussões entre especialistas em Platão.
Sendo assim, não pretendo aprofundar muito esse assunto, porem é importante saber algo sobre.
Apesar das discussões serem bastante recentes, o conceito de “Doutrinas Não Escritas” é apresentado já por Aristoteles em sua Física.
Também sabemos que o autor evitava apresentar esses assuntos fora da Academia, pois, segundo o testemunho de um tal Aristóxenos, Aristoteles costumava contar que quando Platão fazia um conferencia sobre isso acabava sendo desprezado e censurado por aqueles que o ouviam.
O mais importante, contudo, é estabelecermos como é possível que venhamos a acessar essas doutrinas, afinal, se fossem totalmente inacessível não teríamos motivos para estar falando delas.
Assim, o que fizeram grande parte dos pesquisadores foi buscar nas obras dos discípulos de Platão referências a esses ensinamentos, algo que parece estranho uma vez que já sabemos que Platão havia dito que não era para escrever sobre isso.
O que acontece é que Platão nunca falou que essas doutrinas eram impossíveis de serem escritas, mas que fazer isso seria simplesmente algo inútil ou nocivo para os que, sem serem capazes de as entenderem pela oralidade, as estudassem por meio de escritos.
E a prova disso é que, como já foi dito, muitas pessoas o censuravam depois de escutarem suas conferencias sobre esse tema simplesmente por não entenderem.
Ao fim, a proibição feita por Platão de escrever sobre os temas de “maior valor” pare estar fundamentada principalmente na convicção de que, para o processo educativo, a oralidade tinha a supremacia sobre a escrita.
Tal pensamento é certamente uma herança intelectual que Platão tirou de seu mestre Sócrates.
Apesar disso, muitos discípulos de Platão não chegaram a conhecer Sócrates, de modo que já estavam suficiente distantes do filósofo para levar tanto a sério isso da supremacia da oralidade.
Assim, esses homens que foram educados quase exclusivamente na cultura escrita foram capazes de colocar por escrito algo dos temas que Platão nunca ousou escrever.
Ora, o conjunto desses discípulos que escreveram sobre as “coisas de maior valor” é o que chamamos, dentro do âmbito do platonismo, de tradição indireta, a fonte da qual tiramos o pouco que sabemos sobre as Doutrinas Não Escritas.
Por último, mas não significando que tenha pouco importância, Platão nunca considerou essas doutrinas como conhecimentos secretos ou misteriosos, mas de um ensinamento que o autor pensava que deveria vir seguindo de uma preparação prévia que ele proporcionava em sua Academia.
Tanto não se trata de algo secreto ou misterioso que podemos encontrar nos escritos de Platão indicações e alusões ao que parece ser sua Doutrina Não Escrita.
Por fim, temos que essas referências que Platão fazia em suas obras às Doutrinas Não Escritas e o que chamamos de Tradição Indireta de seus discípulos são os lugares onde os grandes pesquisadores sobre o assunto podem buscar o acesso às “coisas de maior valor”.

Além disso tudo que dissemos sobre as obras de Platão, outro ponto interessante é que quase todos seus escritos são diálogos.
DiálogoIsso indica que Platão está escrevendo sua filosofia tentando manter a forma de filosofar de seus mestre Sócrates que, como sabemos, se trata de cuidar e educar a alma, algo que ele acreditava que só poderia ser feito mediante o diálogo vivo.
Assim, temos que os diálogos Platônicos buscam reproduzir nos escritos a atividade filosófica de Sócrates.
E é interessante a maneira pela qual Platão faz isso, pois, além de apresentar um personagem Sócrates fazendo incontáveis perguntas, também faz com que os discursos parem ou mudem de tema de maneira meio brusca.
Esse corte repentino permite que o leitor descubra tanto novas possibilidades de pesquisa quanto que tenha que seguir a investigação por si mesmo.
Ao fim, por conta dessa dinâmica socrática colocada nos textos, nasce o que chamamos de Diálogos Socráticos. Esse será o género literário adotado pelos demais discípulos de Sócrates e por outros filósofos posteriores, ainda que seja Platão o mias notório representante desse modo de escrever. Sobre suas características, contudo, se verá na segunda parte desse texto.

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-ABBAGANO, Nicolas. Historia de la Filosofia. Barcelona: Presença.
-FRAILE, Guilhermo. História de la Filosofia-Grecia y Roma. Madrid: Ed. BAC, 1976.
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

Sócrates: Pensamento Filosófico

“Depois de dois longos textos onde trabalhamos aspectos importantes sobre a figura e a metodologia de Sócrates, me parece oportuno que façamos então uma breve explanação sobre pontos importantes de sua filosofia, afinal, penso que seja o que mais nos interessa. Como porem estamos tratando sobre um autor cuja filosofia poderíamos comparar com uma montanha, não poderemos aprofundar escada uma de suas teses, mas somente apresentar alguns conceitos básicos e chaves de leitura que venham a permitir que cada um possa explorar o pensamento desse grande autor segundo lhe parecer oportuno. Assim, sem mais delongas, adentremos no pensamento de Sócrates.

1- A Novidade de Sócrates
Sócrates é um marco na história da filosofia (e isso se percebe pelo fato do pessoal antes dele ser chamado de pré socrático) uma vez que sua maneira de pensar surgiu como algo totalmente novo. Claro que também os sofistas poderiam ser destacados se o critério fosse a novidade em relação ao pensamento anterior, porem não da mesma forma que Sócrates. O motivo talvez seja o fato de que a filosofia socrática não somente vai além das concepções filosóficas anteriores, mas também supera a própria proposta dos sofista. Desse modo, me parece que a melhor maneira que adentrarmos no pensamento do autor é a partir daquilo no qual ele surge como uma ruptura tanto com os pré socráticos quando com os sofistas.

a) Superação da filosofia pré socrática
Para começar, vejamos a postura de Sócrates em relação ao que chamamos de filosofia da φύσις (physis), palavrinha essa que significa natureza. Por conta desse termo, muitos manuais tende a chamar os pré socráticos de naturalistas ou físicos.
[Pessoalmente, evito essa terminologia para não gerar problemas, porem, caso alguém busque um manual comum de História da Filosofia, acabará se deparando com isso.]

Sócrates rompe com essa filosofia a partir da observação de uma serie contradições entre os pensamentos dos pré socráticos que, muitas vezes, acabavam sendo mutuamente nulos. Poderíamos dizer que Sócrates percebe nesse grande número de contradições a impossibilidade da razão humana chegar a conclusões válidas sobre o tema pretendido, quer dizer, sobre a natureza do cosmos.
Nesse momento é muito importante deixar claro que isso não se trata de uma premissa do pensamento do autor, mas de uma conclusão arduamente alcançada, afinal, temos testemunhos de que, pelo menos na sua juventude, o filósofo de aproximou dessas correntes (motivo pelo qual é acusa da peça de Aristófanes de físico ateu). Ora, quando falávamos sobre os ecléticos, comentamos um pouco sobre um Arquelau de Atenas, dito por Íon de Quios como mestre de Sócrates. Isso indica que o autor foi realmente introduzido na filosofia da physis, porem o fato é que em determinado momento a deixou de lado. Infelizmente não podemos dizer exatamente em que período da vida de Sócrates ele rompeu com tudo isso, muito menos se tratou-se de um  afastamento repentino ou gradual. A única coisa que podemos afirma com segurança é que, uma vez rompida a relação com o modo anterior de fazer filosofia, Sócrates nunca mais de um passo pra trás, de modo que não há qualquer tentativa de mediação ou superação do pensamento sobre o cosmos (algo que veremos retomado em Platão).
[Eu, particularmente, acho muito romântica a ideia de que aquela experiência com o Oráculo de Delfos foi o ponto de partida para essa mudança na vida do autor, mas é como um disse, não se pode afirmar nada sobre isso]
Uma vez rompida a relação com os filósofos de até então, Sócrates deve debruçar-se sobre outro tema e, com o que sabemos até agora, não é difícil deduzir qual foi esse tema que o autor elegeu. Mais do que criticar as contradições e insuficiências da filosofia dos pré socráticos, Sócrates se incomodava com o fato de que quem se entregava as reflexões sobre o cosmos acabava por esquecer-se de si mesmo. Em outras palavras, acusa aos filósofos anteriores de deixarem de lado o mais importante, o homem e os problemas dos homens. Assim, dizemos que Sócrates deixou de lado a investigação filosófica sobre o cosmos para investigar filosoficamente o homem.
Com o que temos até então, penso que já esteja claro o quanto Sócrates se afasta da filosofia dos pré socráticos, porem nos falta indicar em que o pensamento do autor é diferente em relação aos sofistas, afinal, somente assim poderemos entender o motivo dele ser considerado um marco na história do pensamento filosófico.

b) Superação do pensamento sofista
Como já vimos em textos anteriores, é possível fazer uma série de paralelos entre a atividade sofística e a atividade socrática, sendo que a maior semelhança é o fato de tanto um como outros se debruçarem sobre a realidade humana. Dessa forma, para separarmos bem o que foram os sofistas e o que foi Sócrates, o caminho é entender o que há de novidade na maneira que ele desenvolveu sua filosofia sobre o homem. Ambos estão propondo uma filosofia moral, quer dizer, uma tentativa de apresentar aos cidadãos de sua época qual seria a melhor (mais excelente) vida para o homem. O que acontece é que, diferentes dos sofistas, Sócrates percebeu que só poderia falar sobre o melhor tipo de vida para o homem se partisse de uma real entendimento do que é o ser humano. Em outros termos, Sócrates pergunta: “que é o homem?”. Só a partir disso poderá desenvolver seu pensamento ético e moral. Essa pergunta, dentro da tradição filosófica iniciada em Sócrates, é basicamente a pergunta sobre a essência do homem, ou seja, a pergunta sobre o que é o homem em sua realidade mais profunda. De certa forma já se pode considerar como um pequeno passo para dentro do que chamamos de Metafísica.
Para descobrir a essência de algo faz falta.perguntar-se sobre o que é que faz com que esse algo seja exatamente esse algo e não outro algo.
[Admito que frase ficou confusa, mas espero que nos próximas linhas seja aclarada…]
Sem então nos determos muito no próprio conceito de essência (pois em Platão e Aristoteles iremos aprofundar isso) me parece oportuno vermos de uma vez a resposta que Sócrates encontrou para essa pergunta. De maneira praticamente unânime, as fontes que temos para o pensamento do autor dizem que, para Sócrates, o homem é fundamentalmente sua alma. Assim, a alma do homem é aquilo que faz com que o homem seja homem e não outra coisa qualquer (cavalo, cadeira, garrafa de água etc).

Daemon órfico

E nesse ponto vale a pena nos aprofundarmos um pouco no conceito de alma. O termo grego que se utilizava para falar dessa realidade se diz psyché (ψυχή). Não se trata, porem, de uma terminologia exclusiva de Sócrates, pois antes mesmo dele já a podemos encontrar em Homero, nos próprios pré socráticos, nos poetas etc. O que acontece é que a maneira que Sócrates passou a trabalhar com esse termo foi totalmente nova. Vejamos o que se diziam antes de Sócrates para então podermos comparar com a concepção do autor.
-Homero: a alma é aqui como um fantasma ou um espírito, quer dizer, aquilo que abandona o corpo do homem mediante sua morte e ia vagar no Hades;
-Órficos: entendiam a alma como aquilo que em nós expiava nossas culpas terrenas e que era tanto mais ela mesma quanto mais se separava de nosso eu consciente. Isso quer dizer que quanto mais desaparecia nossa consciência (sono, morte, perda dos sentidos etc) mais a alma se fortalecia;
-Pré Socráticos: era a Matéria Primordial em Estado Primordial (da qual já falamos muito enquanto trabalhávamos esses caras) ou parte dessa matéria;
-Poetas: algo indeterminado e nunca teoricamente definido.

De maneira totalmente distinta, Sócrates procurar identificar a alma com aquilo que chamamos de consciência pensante e operante, quer dizer, com nossa personalidade intelectual e moral. Em outras palavras, a alma é a fonte do raciocinar e do atuar ética e moralmente (levando em conta que ainda não existe aqui a distinção entre ética e moral típica das aulas de sociologia e filosofia que temos no colégio). Hoje em dia temos conhecimento suficiente para afirmar com bastante certeza que essa concepção de alma é algo próprio e original de Sócrates, quer dizer, não se trata de algo que o autor tirou de alguma outra fonte anterior ou contemporânea a ele. Incluso existe uma escola escocesa de filólogos que foi capaz de demostrar que esse conceito de alma está totalmente ausente na literatura anterior ao autor. Somente mais tarde que essa noção de alma de converterá na maneira comum de tratar o termo. Baseado nisso, Jaeger escreve em sua Paideia que Sócrates nos apresentou uma noção para a palavra alma que até hoje é mantida entre a maior parte do mundo ocidental. Assim, tendo em mente essa noção de alma de Sócrates, podemos entender algumas de suas máximas que brevemente apresentamos nos últimos textos, tais como “conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”.
Nos dois casos, “si mesmo” significa alma, e isso é testemunhado também de maneira unânime pelas fontes que temos para o estudo do autor.
Mas enfim, depois dessa pequena curva que fizemos para explicar o que Sócrates entende por essência humana (e se resta alguma dúvida digo que ele está falando da alma como consciência pensante e operante), voltemos às diferenças em relação aos sofistas.

Ambos, além de falarem sobre o que seria a melhor vida para o homem, pretendem uma proposta de educação que permita ao sujeito alcançar essa vida excelente. De maneira resumida, esse processo educativo tanto de Sócrates como dos sofistas visa conduzir o sujeito ao que os gregos chamavam de areté (ἀρετή), palavrinha que costuma ser traduzida como virtude. Em linhas gerais, falar de arte ou de virtude entre os primeiros pensadores grego é falar de excelência. Assim, a proposta educativa de Sócrates e dos sofistas consistia em conduzir o homem a sua máxima excelência (areté ou virtude) enquanto indivíduo humano.

And my axe

Aristoteles tem um exemplo muito didático sobre isso que eu já ouvi da boca de pelo menos 3 professores de filosofia sendo dois deles especialistas em filosofia antiga. Se trata do exemplo do machado virtuoso:
Que seria um machado virtuoso ou excelente?
Ora, Aristóteles responde isso dizendo que o machado que possui areté (ou virtude) é aquele que com o menor número de golpes (e se possível com um só golpe) é capaz de cortar algo. Nesse caso, um machado que é capaz de cortar uma palmeira com 3 golpes é mais virtuoso (ou mais excelente) que o machado que precisa de 7 pancadas. Se pensamos um pouco na resposta de Aristoteles, percebemos que para afirmar a virtude do machado ele precisou ter em mente qual era a finalidade última do mesmo (cortar coisas com poucos golpes). O que acontece é que para sabermos qual o fim último de algo é preciso que antes conheçamos a natureza dessa coisa (provisoriamente vamos identificar com essência, ainda que não sejam exatamente a mesma realidade). Em outras palavras, Aristoteles teve que primeiro entender a essência do machado (aquilo que faz com que uma machado seja um machado e não outra coisa) para então saber qual era o seu fim último enquanto machado e, dessa forma, poder afirmar qual seria a sua excelência (ou areté). Com isso em mente, voltemos então para o ser humano…

Se toda a filosofia moral pretende indicar ao ser humano o melhor modo de vida, ou seja, a vida mais excelente, virtuosa e cheia de areté, faz falta que se conheça a finalidade do ser humano e, principalmente, a essência do mesmo. Se partimos de duas noções diferentes do que é o homem, muito provavelmente alcançaremos noções diferentes do fim da vida humana e, consequentemente, se proporá a virtude de maneiras igualmente distantes.
Isso foi mais ou menos o que aconteceu entre Sócrates e os sofistas. Enquanto Sócrates partiu de uma aguçada compreensão sobre a essência do homem, parece que os sofistas sequer se preocuparam em fixar isso, de modo que a virtude (ou excelência) fica limitada ao sucesso na vida política. Sócrates, por sua vez, quando determina que cada um é fundamentalmente sua alma, é capaz de propor uma noção de areté (ou virtude) como aquilo que fortalece e torna melhor (ou ótima) a alma do homem. Como a concepção socrática da alma diz que ela é a personalidade intelectual e moral do sujeito, quer dizer, sua consciência pensante e operante, se pode concluir que a areté deve ser aquilo que atualiza da melhor forma possível a consciência e a inteligência do ser humano. Sendo assim, Sócrates dirá que a excelência do homem, sua virtude, é a ciência entendida como conhecimento fundamentado. Isso é o que faz com a alma se torne aquilo que deve ser e realiza o homem fazendo com que alcance a verdadeira felicidade (que no fundo é a finalidade da melhor vida).
Se antes os valores mais importantes eram aqueles ligados ao cuidado com o corpo e com a reputação, Sócrates realiza um revolução na tábua de valores tradicionais da Grécia Antiga. Um exemplo disso pudemos ver no último texto onde analisamos uma parte do Laques de Platão. Ali, conversando sobre o tipo de educação mais adequado para os jovens, Sócrates sai do enfoque no cuidado físico (hoplomaquia) e mostra a importância de um conhecimento fundamentado sobre a coragem. Não estamos dizendo que Sócrates rompe com todos os valores dos antigos gregos, mas apenas que afirma que as virtudes cultivadas até então pelos gregos (aquilo que tinha que ver com o cuidado com o corpo e a reputação na polis) não tinham valor em si mesmas, mas somente segundo o uso que cada um fazia delas. Se dirigidas pela ignorância, então levavam a alma à ruína; caso governadas pela ciência, conduziam à excelência da alma. Em outras palavras, Sócrates vai reduzir a virtude ao conhecimento e o vício à ignorância. O problema é que isso será motivos de discussões até os dias de hoje, pois quando identificamos sem mais vícios e ignorâncias, pode ser que alguém conclua que quem atua de maneira má (viciosa) o faz não pode desejar o mal, mas por desconhecer que o mal se trata de um mal, ou seja, de maneira involuntária. O problema é que essa conclusão acabou por fazer com que alguns estudiosos condenassem o pensamento de Sócrates como uma forma de intelectualismo.
Ah, mas o que é intelectualismo?
Ora, esse termo (como muitos outros termos filosóficos) pode ser entendido de muitas maneiras. No que se refere à acusação deita a Sócrates, segundo o Dicionario de Filosofia de Nicola Abbagano, diz respeito à corrente que afirma que o intelecto tem uma função dominante ou absoluto nas eleições éticas e morais de um sujeito. Em outros termos, seria como se Sócrates estivesse excluindo da ação moral tanto a vontade quanto outros elementos irracionais que hoje em dia sabemos que interferem no agir humano. O que acontece é que tal acusação só pode ser mantida mediante uma atitude anacrónica em relação ao autor, afinal não devemos esquecer que o homem moderno tem instrumentalizados uma série de conhecimentos sobre o comportamento humanos vindo de disciplinas como a bioquímica, a psicologia, a neurologia, a fisiologia etc. Pois bem, para então seguirmos nosso estudo, devemos entender esses dois princípios socráticos: “a virtude é o conhecimento (e o vício a ignorância)” e “ninguém atua mal voluntariamente”.

Mudança dos tempos

2 – Virtude como Ciência
Sobre o que diz respeito a virtude como ciência, devemos ter em mente algo que dissemos no último texto: que Sócrates enfrentava em seu tempo uma profunda crise de valores. Ao falar de virtudes na Grécia Antiga, falamos de uma grande pluralidade de ideias a ponto de que até então ninguém tinha conseguido apresentar uma teoria que mostrasse a unidade que possuem distintas virtudes entre si. Em ouras palavras, ninguém sabia explicar porque realidades tão diferentes eram igualmente chamadas de virtude. Tanto os sofistas quanto os poetas, na medida em que não conhecem o nexo comum que fazia com que todos aqueles valores fossem justificadamente ditos como virtudes, acabavam por encontrar seu fundamento somente no costume e convicções da sociedade grega. O problema é que em determinado momento as pessoas comuns já não estavam mais tão dispostas a manter os atos virtuosos simplesmente pelo fato de que a tradição sempre disse que deveriam ser praticados. Algo parecido acontece com a sociedade de hoje quando vemos que uma serie de valores estão sendo solapados por meio de expressões como “os tempos mudaram” ou “isso é só uma convenção social”. Por conta disso, Sócrates percebeu a necessidade de dar fortes bases racionais para os atos virtuosos para que não se perdessem. Podemos dizer que, tal como o pré socráticos buscaram submeter os fenômenos do cosmos à razão, Sócrates fez o mesmo com a vida moral humana.
Em Sócrates, ser virtuosos não significa simplesmente a adequação aos hábitos e costumes, mas de algo motivado e justificado racionalmente. Falar então da virtude como conhecimento é, antes de mais nada, acentuar que a virtude deve ser motivada pelo conhecimento. Dito isso, nos falta explicar a questão do erro como algo involuntário.
Devemos partir do fato de que essa afirmação parece estranha pra gente hoje pelo fato de que somos criados dentro de outros paradigmas. Como já dito, o homem moderno tem acesso a todo um arcabouço intelectual ao qual Sócrates não teve (e ainda assim, hoje ema ia não vemos surgir homens como ele).

Além disso, se levarmos em conta a doutrina cristã que configurou o que hoje chamamos de civilização ocidental, temos uma profunda reflexão sobre o mal moral e o pecado que é elegido pelo homem mesmo tendo consciência que se trata de um mal. O grande paradigma dessa situação é a figura de São Paulo que em sua Carta aos Romanos afirmava que não fazia o bem que desejava, mas o mal que não queria. Assim, a primeira coisa que devemos fazer é nos despirmos um pouco dessas categorias para entender a Sócrates dentre de seu próprio contexto. Muitas vezes a resposta que se dá a essa dificuldade é que Sócrates entendeu que todas as vezes que alguém escolhe o mal ao invés do bem o faz por considerar em determinada aspecto aquele mal como um bem. Pode parecer algo simplório e forçado, porem faz bastante sentido. Somos capazes observar em nossas vidas que o mal, diferente do bem que pode ser buscado por si mesmo, nunca é algo que se faz por si. Não me parece que exista um sujeito que faça mal as coisas simplesmente por fazer, mas por que, enganando-se a si mesmo, pensa que pode tirar do mal algum bem. Em outras palavras, poderíamos dizer que a pessoas se blinda de uma ignorância momentânea e deixa de levar em conta (de conhecer) aquele ato como um mal. Outra possibilidade de resposta seria simplesmente aceitar que Sócrates talvez não tenha sido capaz de distinguir as variadas dimensões do espírito humano, de modo que realmente deu ênfase ao aspecto intelectual. Essa distinção, contudo, será melhor abordada no pensamento de Platão. Se o mestre parece contar somente com a racionalidade, o discípulo proporá que junto a ela também existe a irascibilidade e a concupiscência (das quais trataremos em breve), de modo que a ação moral depende do equilíbrio entre as três. O que passa é que mesmo Platão tendo aprofundado de maneira exemplar a teoria de Sócrates, o fato é que toda a ética grega sempre tenderá reduzir a escolha humana pelo mal como um erro da razão, de modo que diante da ética cristã que seguimos consciente ou inconscientemente, qualquer teoria ética dos gregos antigos parecerá um pouco intelectualista.
Isso tudo que dissemos até agora é a parte do conteúdo mais importante que eu queria passar pra vocês. Tendo isso em mente, me parece que já é possível uma leitura mais frutuosa sobre autor para aqueles a quem interessar. Apesar disso, há ainda mais umas ideias que ilustram isso que falamos, só que vou apresentá-las de modo mais breve para não alargar muito o texto.

3 – Conceitos gerais da filosofia de Sócrates

O primeiro dos conceitos que vamos tratar é o de autodomínio, termo que traduzimos do grego enkráteia (ἐγκράτεια). Outros termo que, tal como psyché, já aparecia na literatura grega anterior a Sócrates, porem parece ter recebido um sentido novo com o autor (e disso sabemos pelo mesmo método de estudo filológico que nos revelou a originalidade da noção de alma socrática). Para o filósofo, este autodomínio tinha um contexto específico para acontecer: os momentos de prazer, fadiga e dor, ou seja, nos movimentos dos impulsos e das paixões. Seria como o bem mais excelente para o homem e a base de toda a vida virtuosa, pois por meio disso a alma é capaz de ser senhora do corpo. O interessante é que Sócrates identificou essa noção com outra que vamos tratar agora, a liberdade.
Em grego se diz Eleutheria (ἐλευθερία). Se antes ser livre tinha um sentido somente político e jurídico, agora tem a ver com o domínio da racionalidade sobre a animalidade. Ora, esse autonomia permitia ao sujeito o que chamamos de Autarquia (algo como uma autonomia ou independência), palavra que vem do grego autarkeia (αὐτάρκεια). Basicamente se trata do estado do homem virtuoso em que ele se torna autónomo e independente de todos os impulsos das paixões e encontra na somente razão (ou na própria psyché) o necessário para alcançar a felicidade (que é o fim da melhor vida). Obviamente nenhum desses conceitos podem ser pensados tal como seus correspondentes hoje em dia, e nisso se percebe um pouco do intelectualismo grego do qual falamos antes. O autodomínio não é da vontade, mas do lógos sobre as paixões; a liberdade não é a do querer, mas a da razão em poder impor-se sobre a animalidade; a independência pode ser entendida como a auto-suficiência da razão em relação a todo o resto.
Com isso, podemos perceber isso que dissemos antes sobre a prioridade que tendem os gregos antigos a dar à razão no que diz respeito à vida ética e moral.
Outro tema interessante que é bom que abordemos um pouco é a questão do prazer, pois baseando-se em apenas uma fala de Sócrates foram muitos os que chegaram a o acusar de um hedonista. No Protágoras de Platão, aparece Sócrates identificando o bem com o prazer, de modo que este seria o critério para determinar aquele. Além de isso ir contra muito do que já se foi dito até agora sobre o filósofo, ainda entra em contradição com todas as outras posições sobre o mesmo tema que Platão apresenta nos demais diálogos. Para então entender o que passa, devemos lembrar a função da ironia no método filosófico do autor, pois assim deve ser entendida sua afirmação de que prazer e bem coincidem. Seria como se Sócrates aceitasse essa tese apresentada por Protágoras como algo dado no discurso popular, mas sem consentir com essa sua teoria. De fato, se pensarmos o que Sócrates fala sobre o prazer nas outras obras de Platão, percebemos que o trata como os outros ditos bens para os antigos gregos, quer dizer, não sendo nem bom nem mal em si mesmo, mas somente segundo o uso que se dá. Assim, mediante a mensuração da ciência e a força do autodomínio, o prazer se converte em algo bom, porem jamais sendo um critério para se alcançar a felicidade. Algo parecido acontece com a noção de utilidade ao nos depararmos com um Sócrates que identifica o bem com o útil (Xenofontes) ou com o vantajoso (Platão). Nosso filósofo seria então um utilitarista e o fundamento da vida moral seria o egoísmo. Para isso, devemos mais uma vez recorrer a noção da alma, pois tanto o útil quanto o vantajoso se referem ao que é útil e vantajoso para a alma. Nessa linha, as coisas que são úteis para o corpo são verdadeiros bens na medida em que estão em função da alma. Um exemplo seria uma boa noite de sono ou uma comida nutritiva, pois os dois dizem respeito ao corpo, porem são imprescindíveis para uma bom desenvolvimento da atividade racional que, por sua vez, é útil para alma. Isso demostra que se há algum utilitarismo em Sócrates, não se trata de algo de teor positivista ou materialista (tal como se entende o utilitarismo na modernidade), mas em função da alma.

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Outro termo importante do qual já falamos um pouco sem dar muito aprofundamento é a noção de felicidade, ou em grego, eudaimonia (εὐδαιμονία). Esse termo e o que quer dizer será melhor desenvolvido quando falarmos de Aristoteles, mas por enquanto, vejamos o que quer dizer em Platão. Sempre que falamos sobre a excelência da alma devemos ter presentes que isso significa ao homem poder alcançar a felicidade. De fato, sempre que um filósofo grego fala de ética e moral está, em última instância, falando sobre o modo de viver uma vida feliz. O que acontece aqui é que, como muitos outros conceitos que temos visto ao longo desse post, a felicidade deve ser entendida em função da alma e de sua areté, de modo que não são os bens do corpo que conduzem à felicidade, mas os bens da alma. Quando um sujeito vive uma vida virtuosa, isso significa que ele age de acordo com sua essência, de modo que é capaz de realizar-se plenamente como si mesmo. Nessa linha, entendemos que ser feliz é algo que diz respeito somente ao próprio indivíduo, quer dizer, a felicidade é essencialmente autárquica. O homem não encontra em nada fora de si a felicidade, pois a própria virtude em si mesma já é o suficiente para uma vida feliz. Assim, ao homem virtuosos nada de mal pode acontecer, pois a própria vida de virtude é o suficiente para alcançar o bem último que é a felicidade (e isso talvez explique sua tranquilidade diante da morte por cicuta, pois ao virtuoso nada pode passar que tire de ele sua felicidade). Uma observação interessante que podemos fazer nesse ponto é que a felicidade autárquica exclui, por exemplo, a necessidade de um prémio para além da morte, algo que parece ser o motivo pelo qual Sócrates não ter se preocupado com a destino da alma depois da morte (algo que quando aparece nos diálogos platônicos se costuma imputar ao próprio Platão).

Amizade filosófica

Também parece que existe dentro da filosofia ética e moral de Sócrates alguma reflexão sobre a amizade, só que as categorias metafísicas com que a explica Platão parecem ser estranhas a Sócrates, de modo que seja mais algo do discípulo que do mestre. Xenofonte, contudo, indica que o filósofo contribui bastante para essa reflexão ao conectá-la ao valor moral. Dessa maneira, a partir do que já sabemos sobre o autor, podemos ter alguma noção dos que seria a amizade para ele. Em especial, poderíamos tentar delinear as características que procuraria Sócrates em um verdadeiro amigo. Seguramente deveria ser um homem virtuoso, cujo o valor de sua amizade bastasse a si mesmo, quer dizer, que não dependesse das vantagens que nos pudesse oferecer. Com isso ainda se pode concluir que para que determinado sujeito possa encontrar bons amigos (ou seja, homens virtuosos) ele mesmo deve ser virtuoso. Ao fim, temos que também a amizade está subordina àquela noção socrática de alma.
Por último, mas não menos importante, vejamos de que maneira o pensamento ético e moral de Sócrates termina em uma aguçada percepção política. Ainda que se saiba que Sócrates nunca gostou muito do ativismo político, jamais podemos pensar que seu pensamento era apolítico, até porque seu horizonte de reflexão sempre foi a polis ateniense. Sabemos que em toda sua atividade educativa ele tratou de formar seus alunos para que, se assim desejassem, pudessem ocupar de maneira apropriada cargos políticos. De fato, depois de tudo que dissemos sobre o autor, não seria estranho escutar que ele pensava que o político ideal era justamente o homem excelente. Mas não só isso, pois além de ser um sujeito que tivesse conseguido de cuidar bem de sua alma, também deveria ser capaz de cuidar da alma dos demais. Em Platão, Sócrates diz literalmente que o bom político é um bom cuidador de almas.

4 – Teologia Socrática
Até aqui, falamos do que pode ser considerado a Ética Socrática, quer dizer, a mensagem e o ensinamento ético e moral de Sócrates. Podemos, contudo, falar ainda mais algumas coisinhas sobre o seu pensamento sobre os deuses, quer dizer, sobre a chamada Teologia Socrática. Ainda que nosso texto possa acabar ficando um pouco mais longo do que o ideal, o fato é que se trata de um tema importante e que está presente em muitos manuais.
Começaremos então vendo a posição de Sócrates ante a concepção de divindade.

deuses gregos

Em primeiro lugar devemos ter em mente que, apesar de ser chamado de físico ateu, Sócrates não pode ser visto como um descrente, afinal, diferente dos sofistas, seu pensamento sobre o assunto não termina numa negação dos deuses.
A crítica que o filósofo tinha em relação a religião tradicional grega era por conta do antropomorfismo físico e moral que faziam dos deuses nada mais que homens e mulheres grandes e imortais. Claro que, num primeiro momento, essa crítica não parece original para quem tem nos acompanhado desde o início, afinal, algo parecido disso Xenófanes. Apesar disso, há uma sútil diferença no fato de que Xenófanes pensava o divino desde a cosmológica e Sócrates colocava a ética como chave de leitura. Com um pouco mais de dificuldade se pode extrair ainda outro ponto interessante das fontes socráticas. Parece que o autor rejeitava também o politeísmo grego, de modo que propõe uma concepção unitária do divino. Isso, todavia, não significa que Sócrates pode ser pensado como um monoteísta no sentido que temos hoje dentro de uma sociedade constituídas sobre as bases do pensamento cristão. Aliás, é bastante difícil entender como Sócrates poderia sustentar filosoficamente uma concepção sobre o divino, afinal, não conta nem com as categorias filosóficas dos pré socráticos (pois rompeu com eles) nem com as categorias metafísicas que só aparecerão depois do que chamamos de Segunda Navegação de Platão (e em breve falaremos mais disso). Carecendo então de uma definição ontológica para a divindade, Sócrates tentará defini-la a partir do que parecem ser suas operações. Desse modo, tala como os eclético (mas sem a carga física e focado na ética e na moral), pensará no divino como, principalmente, inteligência. E sobre isso vale a pena aprofundar um pouco.
A principal fonte que temos sobre esse tema, ainda  que durante algum tempo descreditadas pela crítica, são as obras de Xenofonte. Numa delas Sócrates é apresentado dando uma espécie de demonstração da existência do divino. É mais ou menso assim:
1) o que não é obra do acaso, mas que é constituída para um objetivo ou um fim, supõe uma inteligência que o tenha produzido propositalmente;
2) ao observarmos a o homem em sua configuração orgânica, percebemos que deve ser obra de alguma inteligência;
3) objetar que o artífice deveria ser visto com sua obra é fatal de perspicácia intelectual, pois não podemos ver nossa inteligência, porem sabemos que fazemos coisas mediante a reflexão e não o pura acaso;
4) tendo em vista que o homem possui privilégios em relação a outras criaturas, se supõe que o artífice divino cidade dele de maneira especial.
Essa argumentação que Xenofonte coloca na boca de Sócrates indica alguns pontos interessantes sobre a teologia do autor. Em primeiro lugar é que há um nexo entre a inteligência divina e a inteligência humana, quer dizer, uma relação entre o divino e a alma. Temos também que essa inteligência atua tendo em vista determinada finalidade, e nisso o autor ainda mostra um forte antropocentrismo na medida em que todos os argumentos são feitos a partir da realidade do ser humano e não da natureza. Por último, quando o autor afirma que o divino cuida de maneira especial da vida humana, temos também que a divindade é providente. Assim, quando Sócrates fala da divindade, fala de uma realidade inteligente, atuante mediante fins e providente. Ora, tudo isso que Sócrates falou sem a perspectiva ontológica será depois redimensionado por Platão e Aristoteles uma vez que eles já possuirão o que chamamos de metafísica.

Ainda dentro de seu pensamento teológico, não poderíamos terminar essa serie de textos sobre Sócrates sem comentar sobre o daemónion (δαιμόνιον) socrático. Uma vez que essa palavra significa literalmente algo como “divindade”, acabou sendo um dos motivos de Sócrates ter sido acusado de heresia, quer dizer, acusado de introduzir novas divindades na religião tradicional grega. Ora, tanto em Platão como em Xenofonte, esse daimónion sempre aparecia como um sinal ou como uma voz da divindade que se revelava à Sócrates (não podemos esquecer do caso do Oráculo de Delfos). Vendo isso, muitos interpretes ficaram chocados e deram as mais variadas interpretações para essa recorrente figura dos discursos de Sócrates. Temos os que atribuíram isso totalmente a su ironia, outros que viram aqui um claro indício de que Sócrates possuía problemas mentais e outros o reduziram a “voz da consciência” ou algo como um “sentimento do que é ou não conveniente”. Um primeira observação interessante que podemos fazer disso é que o substantivo grego que é utilizado está no género neutro, quer dizer, não se trata de um ser pessoal, mas de um fato ou evento. Além disso, devemos ter cuidado para não traduzir o daimónion socrático com a noção grega de “demónios” (que nada tem a ver com o que entende o cristianismo sobre o mesmo termo). Na Grécia Antiga seria totalmente implausível falar de uma relação imediata entre os homens e os deuses, de modo que existiam a figura do daemon (δαίμων) que faziam essa mediação. Apesar do fato de que provavelmente o pensamento geral fosse o de que as revelações divinas chegassem a Sócrates por meio de um desses “demônios”, o fato é que nunca se utilizou esse termo para falar dessas experiências, de maneira que não podemos traduzir daemónion por demônio. Ao fim, o que podemos dizer com alguma certeza é que Sócrates pensava nesse daemónion como um acontecimento de natureza sobrenatural, e há pelo menos dois fatores que explicam isso: sua profunda religiosidade e sua visão do divino como realidade providente.

A divindade que quer cuidar dos homens, em em especial dos homens bons, indicava em algumas ocasiões a melhor via.
Resta então entendermos o teor das revelações feitas por esse daemónion, quer dizer, provavelmente não se tratava do resultado da Mega-Sena. Antes de mais nada se deve ter em mente que as revelações do daemónion nunca afetam o âmbito filosófico, afinal, a filosofia se faz pela razão e somente por ela. Ademais, Sócrates não faz relação direta entre os eventos que tinham que ver com o daemónion e sua atividade na cidade de Atenas (ainda que a considerasse uma missão divina). Parece então que as revelações de daemónion dizem respeito somente a eventos particulares da vida de Sócrates tais como estar ou não em determinado lugar ou aceitar ou não em seu grupo determinada pessoa. A mais famosa indicação de daemónion para Sócrates foi o afastamento da vida política militante, algo que, segundo o próprio filósofo, o salvou de ser condenado a morte muito antes do que foi.
E assim finalmente entramos no último ponto que eu gostaria de tratar nesse texto, a relação que hem entre essa teologia socrática e sua ética. Não devemos esquecer que a ética socrática não se baseia em nada que não seja o próprio lógos, de modo que o agir ético nada que tem a vez com receber um prémio dos deuses ou com ser um mandamento deles. Sequer podemos dizer que a divindade se assegura da correspondência entre a vida ética e a felicidade, afinal, já dissemos que a própria vida virtuosa já é por si uma vida feliz. Os valores morais são então entendidos não como valores divinos, mas como valores absolutos que também podem ser reconhecidos pelo divino. Dessa forma, mesmo que a divindade não seja autora dos valores morais, ela os considera a ponto de cuidar de maneira particular dos homens bons e, no caso de Sócrates, ainda os ajudar com revelações. Ao fim, diferente da concepção cristã de Deus que se preocupa tanto com os bons quanto com os maus de modo individual, as divindade desenhada por Sócrates tem em conta somente aqueles que seguem o caminho da virtude.

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza

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Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-ABBAGANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007
-REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. I, 1993

Sócrates: Vida e Método (Parte 2)

“Dando sequência ao último texto, nessa segunda parte vamos tentar explicar aquelas duas questões que ficaram em aberto: em que consiste o exame socrático e qual seria o motivo do filósofo ter continuado essa prática apesar de ela o levar a ser pobre e odiado na cidade.

1 – O Exame Socrático

Para entendermos em que consiste esse exame, temos que averiguar duas coisas sobre ele:
-o modo pelo qual Sócrates realiza esse exame;
-o critério do filósofo para dizer se alguém passou ou não nele, quer dizer, se realmente possui sabedoria ou se somente parece que a possui.
Infelizmente a Apologia de Sócrates não nos diz muito sobre isso (ainda que possa dar algumas pistas), mas apenas afirma que Sócrates fazia esse exame repetidas vezes e seus opositores sempre falhavam nele. Podemos, contudo, acudir a um dos diálogo de Platão chamado Laques, pois aqui veremos a Sócrates explicando ao seu interlocutor que tipo de resposta ele espera.

O texto como apresentando a Lisímaco e Melésias como filhos de homens célebres, quer dizer, sujeitos que construíram uma forte reputação na cidade por conta de seus grandes feitos de guerra e de política. O problema é que esses homens célebres acabaram por descuidar da educação de seus filhos, de modo que Lisímaco e Melésias não possuíam nenhum grande feito do qual se orgulhar. Como esses homens não queriam o mesmo destino para seus filhos, combinaram de os educar para que fossem os melhores (aristós) desde a mais tenra idade. Para isso convocam dois generais atenienses, HoplomaquiaNicias e Laques, para assistirem uma apresentação de hoplomaquia (basicamente o combate armado) e julgarem se vale ou não a penas gastar tempo para aprender aquela arte. Nicias e Laques vão discutir sobre a conveniência ou não de se aprender a hoplomaquia cada um defendendo um posição oposta. Ainda que não faça falta ver toda a discussão deles, é importante ressaltar pelo menos um dos argumentos de Laques: que de nada vale a hoplomaquia se o sujeito não possuir também a virtude.
[Obviamente não estamos falando de virtude tal como se pensa nela hoje em dia, mas no sentido grego, quer dizer, algo mais ou menos como “tutano”.]
Laques dizia isso pelo fato de que a hoplomaquia dá para quem a prática um grande porte atlético que pode atrair inimigos mais fortes, de maneira que para um sujeito sem “tutano” (virtude) seria um tiro no pé. Nesse momento, o general mesmo pede que Sócrates (que até então não sabíamos que estava naquela cena) fale algumas coisa, pois teria sido um homem que sempre esteve preocupado com o tema da educação da juventude. Depois de falar sobre vários temas que teriam que ver com a educação dos jovens (basicamente o cuidado com suas almas), Sócrates diz que o mais importante então seria conseguir provocar a virtude na alma dos dois jovens. Uma vez que Laques e Nicias concordam com Sócrates, este afirma que, para ser capaz de provocar a virtude, é necessário que se saiba o que é em absoluto a virtude, algo que seria muito trabalhosos caso se tratasse da virtude em geral, de modo que propõe que se trate apenas de uma parte da virtude que, no caso específico, seria mais importante para a formação dos garotos: a coragem.
[Por conta disso o Laques será conhecido como o diálogo sobre a coragem]
Sócrates então vai perguntar ao generais se eles sabiam o que é a coragem e, caso soubesse, deveriam saber também qual sua definição. Nesse momento se pode dizer que começa o exame.

Isso já no permite concluir que o exame de Sócrates nunca era sobre temas aleatórios, mas sempre sobre alguma virtude (ou mesmo a virtude em geral). Isso se explica porque uma das principais preocupações do filósofo era o cuidado da alma que, para ele, somente se daria pela infusão de virtudes na mesma (desenvolveremos melhor em outro texto).
Outro dado que temos é que seu exame sempre começa com um pedido de definição sobre a virtude que se pretende investigar. Para que o interlocutor de Sócrates provasse que sabia do que estava falando, tinha que apresentar uma pequena definição sobre aquela determinada virtude (chamaremos de tese 1) e, por sua vez, Sócrates faria uma crítica a essa tese (que chamaremos de crítica 1). Dessa maneira, seu interlocutor deveria propor um tese 2 que superasse a crítica 1 e Sócrates faria então uma nova crítica (crítica 2). Essa dinâmica de tese e crítica é o que chamamos de Dialética (somente no sentido platônico, pois em Aristóteles já tem outra cara).

2 – O critério para passar no Exame Socrático.
Um contra todosLaques, ao ser questionado por Sócrates sobre a definição de Coragem da a seguinte resposta: aquele que está disposta a combater, firme em sua posição, ao seus inimigos, este é um homem corajoso.
Ao ouvir isso, Sócrates se desculpa com Laques por não haver sido tão claro quanto a resposta que esperava, pois aquela não parecia lhe servir. O que acontece é que ela não era capaz de englobar tudo o que é a coragem. Como somente dizia respeito à infantaria e a situações de combate, acabava deixando excluída, por exemplo, a coragem que tem um homem ao enfrentar perigos no mar ou mesmo a coragem de um enfermo ante a doença uma doença. O que acontece é que Sócrates queria um definição de Coragem que englobasse todos os feitos corajosos, e não somente alguns de determinado tipo. Assim, Sócrates faz um coisa que não faz em mais nenhum diálogo, ele dá um exemplo do tipo de definição que espera: fala da “Rapidez” e a define como a capacidade de “realizar muitas coisas em pouco tempo”, afinal, tal definição serve para a rapidez em todos os casos, quer dizer, no andar, no falar, no trabalhar no escrever etc. A partir disso tanto Laques quanto Lícias começam a dar respostas melhores enquanto que Sócrates vai fazendo suas críticas.
[E se alguém s interessar pelo tema vale a pena buscar o texto completo]
Quando o Sócrates diz que a definição de uma virtude deveria ser algo que servisse para englobar todos os atos virtuosos que tivessem que ver com ela, se pode dizer que estava buscando um conhecimento sobre as virtudes que estivesse no âmbito da episteme (ἐπιστήμη) ou ciência. Por outro lado, a primeira definição de Laques (tal como de muito de seus interlocutores) parecia estar no que chamamos de empeiría (εμπειρία) ou simplesmente experiência.
[Distingamos rapidamente experiência e ciência no contexto socrático]
Obviamente esse tipo de distinção será sistematicamente apresentado quando formos tratar sobre Aristóteles, porem podemos adiantar alguns pontos para esclarecer melhor nosso pensamento.
Falar de ciência no contexto da Grécia Antiga, não tem muito que ver com o que se entende hoje em dia. De modo geral, para os sujeitos que estamos estudando agora, ciência é  um conhecimento fundamentado sobre as causas de algo. Um exemplo seria o saber que possui um médico ao receitar um medicamento a seu paciente. De maneira distinta, temos a experiência, que também é um forma de saber, mas não possui o conhecimento fundamentado das causas.
Vovó.gifUm exemplo seria o da avó, que não sendo médica, da um remédio para seu neto que faz ele ficar curado da doença. O interessante é que, na prática, ambas formas de conhecimento servem para o fim proposto que era curar a doença. Isso, porem, não indica que são qualitativamente iguais, afinal, se fundamentam em coisas distintas.
O conhecimento do médico supõe que o sujeito estudou muito para saber que a composição química de determinado medicamento será capaz de combater determinados organismo que estão causando a enfermidade sem causar muitos danos ao corpo daquela pessoas que está doente. Isso quer dizer que ele conhece o remédio, conhece a doença e sabe as causas químicas que levaram a que o enfermo seja curado. A vovó, por outro lado, não estudou medicina, porem já teve várias vezes a experiência de tomar aquele remédio e ser curada da doença. Além disso, também sempre deu o mesmo remédio para seus filhos e viu que eles também ficavam curados.
Sendo assim, ela supõe que, caso de o mesmo medicamento ao neto, este também ficará curado. O problema é que o tipo de conhecimento da vovó se fundamentas apenas em experiências particulares que se repetiram muitas vezes, mas que nem sempre podem se repetir.
Dai, pode ser que um dia ela dê o remédio para seu neto e ele não fique bom, de modo que a única solução será levar ele ao médico.
Ao chegar no hospital, provavelmente o doutor descobrirá a causa pelo qual o remédio não funcionou (porque a bactéria que estava atormentando o rapazinho era uma bactéria diferente, pelo fato do organismo do menino ter desenvolvido alguma característica que rejeita o medicamento antes que ele possa fazer efeitos, ext.). Ora, isso quer dizer que aquele conhecimento da avó só serve para curar seu neto se são repetidas umas tantas circunstâncias que estavam presentes nas demais experiências de cura que fundamentam tal conhecimento. Caso mudem muitos essas circunstâncias, provavelmente o remédio da vovó não funcionará. Claro que não estou propondo que desprezemos a sabedoria de vida dela, afinal, pode ser que depois de anos e anos cuidando de seus filhos e netos, provavelmente a vovó conhece uma série de doenças e remédios diferentes, a ponto de poder, só de olhar pro moleque, saber qual o melhor remédio pra dar pra ele. Isso, contudo, ainda é um conhecimento restrito ao campo empírico, quer dizer, que depende de que aquelas tantas circunstâncias sempre se repitam. Com o médico é diferente, justamente por conhecer profundamente as causas que levam aos efeitos, mesmo que de um paciente a outro mudem totalmente as circunstâncias da doença, ele ainda assim será capaz de alcançar a cura do sujeito.
[Voltando a Sócrates]

Quando eu digo que Laques não parece possuir ciência, mas experiência, quero dizer que ele não possui um conhecimento universal sobre a Coragem, fundamentado nas causas da mesma; mas sim um conhecimento particular que era fruto de ter visto (experimentado) muitas atos corajosos. Sócrates em nenhum momento dirá que ele não sabe o que é a Coragem, muitos menos que ele não seja um homem corajoso, afinal isso seria um absurdo tendo em vista que se tratava de um grande general ateniense que facilmente era capaz de identificar quando uma ação era ou não corajosa. O que acontece é que o Laques estava limitado apenas a reconhecer a Coragem em situações concretas, mas não de dar uma definição que fosse capaz de unificar todas as formas de Coragem. Assim, uma vez que o general recebe a crítica de Sócrates e entende o exemplo que o filósofo deu sobre a rapidez, ele propõe uma outra definição mais conforma às expectativas de Sócrates, de que a Coragem é uma “perseverança da alma”. Obviamente Sócrates também vai criticar essa outra tese e Laques não será capaz de superar a crítica. Nicias, que era um pouco mais culto que Laques e tinha frequentado alguns sofistas, proporá uma resposta más próxima daquilo esperava Sócrates. Diz que a Coragem seria “o conhecimento sobre as coisas que se há de temer”, mas também será criticado pelo filósofo. Ao fim, o diálogo termina com o que chamamos de aporia, quer dizer, a situação onde os interlocutores de Sócrates não têm mais o que dizer e simplesmente desistem de continuar discutindo. O que acontece é que a aporia não representa a mesma coisa para todos os tipos de homens. Para alguns é como que um novo início para um investigação mais bem feita, para outros é uma humilhação pela qual o faz passar Sócrates ao mostrar que um não sabe o que pensa saber.
[Sobre a qustão da aporia em si, vamos discutir um pouco mais em outro texto, de modo que agora me parece necessários concluirmos sobre o que é o método socrático para então vermos os motivos de Sócrates continuar a fazer isso]
Pode ser que, tal como muitos dos acusadores de Sócrates, você esteja pensando que ele é um cara chato que quer perturbar os outros, porem não é bem assim. Parece que o filósofo, no fundo, não está exatamente querendo saber se aquele com quem dialoga sabe ou não definir a virtude sobre a qual discutem, mas se ele é capaz de fundamentar sua definição. Isso ficará bastante pelo fato de que, apesar Laques e Nicias terem falhado em seu exame, a definição que os dois deram aparece mais tarde como uma definição correta na República de Platão. Isso é assim pelo fato de que Sócrates não busca um fórmula pronta que digam o que é a Coragem (ou a Piedade, ou a Justiça etc.), de modo que não basta somente “acertar a resposta” para passar no exame de Sócrates. No fundo, para passar no exame de Sócrates é preciso, além de definir bem, ser capaz de fundamentar o que disse. O motivo de Sócrates desejar a fundamentação do conhecimento sobre as virtudes ficará mais claro quando investigarmos o motivo de sua persistência na prática do exame apesar de ser tão prejudicado por isso. Em suma, podemos falar o seguinte do método socrático:
-se da por meio de um diálogo dialético numa dinâmica de teses e críticas sobre a definição de uma virtude;
-o critério para passar no exame é a capacidade de fundamentar racionalmente o conhecimento que se diz que possui.
Com isso, já sabemos o suficiente do exame socráticos para lermos grande parte dos diálogos de Platão, porem, vamos acrescentar algumas informações importantes que normalmente encontramos nos manuais de filosofia e que podem nos ajudar crescer um pouco mais no entendimento do método de Sócrates de fazer filosofia.

a) Diálogos
Pelo que já falamos anteriormente, já seria possível a um leitor mais atento imaginar que Sócrates fazia sua filosofia por meio de diálogos, pois o retratamos como um sujeito que examina a pessoas e vai perguntando definições de coisas, criticando teses, sugerindo outras etc. Podemos, contudo, perguntar-nos o porquê de Sócrates não fazer também grandes discursos como os sofistas, pois eles eram capazes de persuadir a assembleia dos cidadãos na medida em que moviam sua vontade para onde bem entendiam. Em outras palavras, eram discursos extremamente eficazes e Sócrates poderia muito bem ter utilizado eles para transmitir sua filosofia. Pois bem…
Massificação.jpgO motivo pelo qual o filósofo abria mão dos largos discursos é o fato de que eles estavam voltados sempre para as massas, isto é, acabavam por ignorar a individualidade do sujeito que os escutava. Essa consequência dos discursos sofistas não era interessante para a atividade filosófica de Sócrates, pois o filósofo estava muitos mais interessado no crescimento individual de seus ouvintes do que na persuasão das assembleias. Ao optar por algo mais breve como os diálogos, Sócrates era capaz de envolver aquele que dialogavam com ele numa experiência de busca comum à verdade, afinal, os diálogos conseguem se moldar às necessidades mais profundas de cada indivíduo na medida em que vão sendo construídos com cada um. Isso vai ficar mais claro quando entendermos que esse crescimento individual que Sócrates pretende tem que ver com que o autor chama de “cuidado com a alma”, porem veremos isso em outro texto.
b) O Não Saber Socrático
Certamente uma das frases mais famosas da filosofia é justamente de Sócrates e diz o seguinte: “Só sei que nada sei”. Ainda que muitos tenham visto aqui um sinal de ceticismo da parte do filósofo (aumentado pelo fato de muitos dos diálogos de Platão terminarem em aporias), me parece se tratar de uma análise mal feita e superficial. Essa afirmação deve ser entendida tendo em vista o contexto ao qual ele pretendia criticar. Isso quer dizer que não se trata com uma afirmação sobre a impossibilidade do saber, mas de uma ruptura com três pretensões de sabedoria de sua época: a dos físicos (pré socráticos), a dos sofistas e a da tradição geral. Ao fim, o Não Saber socrático é uma abertura a uma nova forma de sabedoria que, na Apologia de Sócrates, ele chama de Sabedoria Humana, de modo que sua afirmação de somente saber que nada sabe é, na verdade, um convite para a busca daquele conhecimento fundamentado do qual falávamos.
c) A Ironia Socrática
A Palavra grega eironéia (ειρωνεία), da qual dizemos ironia, significa também dissimulação. Basicamente dizemos que Sócrates assumiria algumas máscaras ante seu interlocutor para forçar que ele desse conta de si mesmo. Ao assumir métodos e ideias de seus adversários com as quais não concordava, Sócrates era capaz tanto de os engrandecer até se tornarem uma caricatura, quanto de os inverter e mostrar suas contradições. Essa mesma “ignorância socrática”, da qual tratávamos acima, também pode ser vista como uma máscara pela qual Sócrates conduz a argumentação. Ao fim, toda e qualquer dissimulação que faça Sócrates pode ser remetida à ironia, de modo que esse é a característica mais própria do método socrático de transmissão de conhecimento.
d) Confutação e Maiêutica
Apesar de quase podermos chegar a dizer que a dialética socrática é fundamentalmente ironia, não quer dizer que seja algo de pouca seriedade.
Isso se entende melhor se tivermos em conta os dois movimentos essenciais nos quais a ironia socrática se desenvolve. O mais comum nos diálogos platônicos é vermos a Sócrates sempre começando suas discussões com aquilo que chamamos de confutação.Nesse contexto, se trata basicamente no ato de refutar ou rebater as teses do adversário. Se os personagens que disputavam com Sócrates nos diálogos começavam o exame socrático cheios de certezas e segurança de saber, rapidamente Sócrates mostrava que as coisas não eram assim tão simples e os criticava até exaurirem todos seus recursos argumentativos. Ao fim, seus interlocutores se encontravam em uma certa crise: por um lado percebem a fragilidade do saber que antes lhes parecia seguro, por outro não encontram novas crenças e certezas às quais se agarrar. Sócrates parece fazer isso por acreditar que seria impossível à alguém alcançar a verdade fundamentada sem antes limpar de sua própria alma as certezas falsas. O problema é que, tal como dizíamos no texto anterior, esse tipo de coisa foi fazendo com que Sócrates fosse odiado, afinal, muitas pessoas eram soberbas demais para admitir a própria falta de capacidade de fundamentar as próprias certezas e, dessa forma, simplesmente diziam que Sócrates confundia a mente das pessoas (coisa, aliás, que Nicias faz no Laques). Apesar dessa dificuldade, temos que nem todos eram soberbos e recusavam-se a reconhecer seus próprios limites, de modo que, caso o fizesse, poderiam entrar com o filósofo no segundo movimento de sua ironia dialética, a maiêutica (μαιευτικη) ou “a arte de fazer partos”. O modo comum de interpretar isso é a partir de uma cena do diálogo de Platão chamado Teeteto onde Sócrates compara sua atividade no diálogo com a de uma parteira, sendo que esta ajuda uma mãe grávida a parir seu filho e ele ajuda a seus interlocutores a parirem suas ideias. Seria como se Sócrates fosse dando pistas e conduzindo aquele que dialoga com ele (e isso fica bastante claro em seu diálogo com Laques) para que fosse capaz de explicitar aquela que ideia que já tem, mas que ainda não é capaz de formular. Em outras palavras, é a intervenção de Sócrates para ajudar que a alma de um sujeito de à luz a uma ideia.

3 – Por que Socrates continua com seu exame?

Segundo o discurso que o autor faz na Apologia de Sócrates, sua atividade filosófica era uma missão divina que começa justamente com a afirmação do Oráculo de Delfos de que Sócrates seria o mais sábio entre os homens.
Como o filósofo não se considerava sábio, começou a examinar os homens de Atenas que diziam possuir a sabedoria para tentar entender o sentido do oráculo. Falso sábioAo fim desse exame percebeu que nenhum desses homens eram realmente sábios naquelas coisas nas quais pretendiam ser (pois não eram capazes de fundamentar suas crenças e certezas), mas apenas pensavam erroneamente serem sábios. Sócrates então concluiu que ele mesmo seria o mais sábio entre os homens justamente por reconhecer a fragilidade de sua própria capacidade de conhecimento, ou seja, por não presumir que possuía uma sabedoria que realmente não tinha.

O que acontece é que Sócrates não interpretou o oráculo como algo que simplesmente terminaria uma vez que ele tivesse entendido seu, mas sim como uma missão divina que, por ser algo vindo dos deuses, necessariamente tinha que resultar em algum bem (na República vemos Sócrates falar dos deuses sempre como causas de bens e nunca como causas de males). Se pode dizer que Sócrates entende que era a vontade dos deuses que ele seguisse realizando seu exame.
Além disso,  parece ser também uma prática que Sócrates julga necessária e urgente para a cidade. Isso se percebe de modo claríssimo na República mediante os discursos de Glaucon e Adimanton (irmãos de Platão) que revelam uma certa crise de valores na cidade de Atenas. Nessa obra de Platão, os adversários de Sócrates começam a subverter uma série de valores tradicionais da cultura grega antiga chegando ao ponto de afirmar que a Injustiça é melhor que a Justiça. Dois dos personagens dessa obra que são examinados por Sócrates antes da intervenção de Glaucon e Adimanton pode ser considerados como figuras dessa crise de valores: Polemarco e Trasímaco.
“Se Polemarco representa a incapacidade de fundamentar valores tradicionais ante um teste dialético, Trasímaco representa a materialização da possibilidade de se atacá-los e de se subvertê-los e o risco dai decorrente.” (Motta, 2005).
Certamente a incapacidade de fundamentar os valores tradicionais da cidade na figura de Polemarco é algo que deve ser visto, porem, com mais urgência ainda, o que representa Trasímaco nos pode contextualizar na situação do povo ateniense em relação a esses valores. Esse segundo personagem era um sofista e que normalmente atuava reproduzindo com um pouco mais de proficiência o discurso da maioria. Isso indica que naquela época havia uma boa parte de cidadãos atenienses que já estavam um pouco revoltosos em relação os valores tradicionais a ponto de os atacarem. Essa situação será explicitamente revelada com o discurso dos irmãos de Platão que dizem que irão fazer um ataque a justiça que eles mesmo não acreditam ser correto, mas que está na boca de muitos cidadãos. Será um discurso forte e difícel de refutar, de modo que Sócrates deverá expor sua larga teoria sobre a construção de uma cidade ideal para mostrar que sem a Justiça é impossível tanto ao homem quando à cidade a melhor vida. Não sabemos ao certo se Platão está criticando concepções de seus irmãos, ou se apenas os coloca como figuras da elite grega que se encontrava desconcertada com a proliferação de tantos ataques contra a virtude ao estilo do que havia feito Trasímaco. Apesar disso,o fato é que se tratam de dois jovens que receberam uma boa educação, mas que se encontraram compelidos por discursos subversivos em relação ao valores tradicionais atenienses.
[Quando tratarmos do pensamento de Platão vamos voltar e explicar melhor esses temas, porem, já podemos adiantar que Sócrates será na República como que a figura da sabedoria filosófica que vem para retificar esses pensamentos.]
Resumindo, temos 4 figuras na “República” que nos explicarão a necessidade e urgência da atividade socrática:
-Polemarco: incapacidade de fundamentar os valores tradicionais.
-Trasímaco: discurso subversivo dos valores tradicionais da parte da maior parte dos cidadãos atenienses.
-Glaucón e Adimantón: aceitação de grande parte da elite ateniense aos discursos subversivos dos valores tradicionais.
-Sócrates: a filosofia dialética que retificaria os discursos subversivos e ensinaria a fundamentar os valores tradicionais.
Aparentemente, Sócrates foi capaz de perceber a instabilidade de importante valores da cidade não só pelo fato de estarem sendo postos a prova pela maioria dos cidadãos e por grande parte da elite ateniense, mas também pelo fato de que, ante esses ataques, poucos eram capazes de fundamentar a importância dos mesmos. Se então juntarmos isso com o que já falamos sobre a atividade socrática como um desejo divino que necessariamente deve ser o desejo de um bem, podemos entender o porquê de Sócrates, apesar de ser odiado e ficar pobre, continuou com seu exame. Em resumo podemos dizer: pouco custava para Sócrates ser odiado e ficar pobre e com isso fosse capaz de, seguindo a vontade dos deuses, refundamentar os valores tradicionais gregos que estavam sendo perdidos e, com isso, fazer um grande bem à cidade.

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza.

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Bibliografia:
-MOTTA, Guilherme Domingues da. Glaucón, Admanto e a Necessidade da Filosofia. Kléos, Rio de Janeiro, n. 9/10, p. 87-112, 2005
-REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. I, 1993

Sócrates, Vida e Método (Parte 1)

“Depois de tanto esforço e trabalho finalmente chegamos num dos mais divertidos e interessantes personagens da História da Filosofia. De Sócrates sabemos bastante coisas por conta de alguns de seus discípulos como Platão ou os socráticos menores.

1 – Sócrates
SocratesSabemos o ano exato de sua morte, 399 a.C. O motivo foi uma condenação que recebeu dos atenienses da qual vamos falar tratar um pouco mais pra frente. Platão fala que isso aconteceu quando o filósofo tinha 70 anos, de modo que podemos estimar 470 a.C. como a data de seu nascimento. Seu pai, Sofronisco, era escultor e sua mãe, Fenarete, era parteira (já deixo aqui a sugestão para nomes que vocês podem dar a seus filhos). Sua esposa se chamava Xantipa e, segundo relatos dos cínicos, seria a mulher mais insuportável entre as que existem, existiram e existirão. Isso pode ser que não seja verdade uma vez que os cínicos eram fortes opositores do matrimônio como instituição. No momento de sua morte tinha dois filhos jovens e um pequeno, de modo podemos supor que casou-se com Xantipa já em idade avançada. Há um tradição que fala de outra esposa, Mirto. Isso pode indicar que teve uma esposa quando era mais jovem e logo voltou a casar-se. Sabemos ainda que, mesmo não tendo interesse na vida  política da cidade, Sócrates nunca saiu de Atenas a não ser quando convocado para batalhas, e incluso é dito como um excelente guerreiro.Fortão Apesar da visão que temos hoje em dia de filósofos, Sócrates possuía um físico incrível capaz de suportar as mais duras fadigas, de modo que no diálogo de Platão intitulado Laques, este diz que se todos os gregos que lutaram na Batalha de Delio tivessem atuado como Sócrates, aquela batalha seria ainda mais memorável. Sua capacidade intelectual era tal que, em momentos de grande concentração, se diz que chegava a ter elevações extáticas que podiam se estender por um dia e uma noite inteiros. Além disso, também se fala que Sócrates era um homem de grandes virtude morais, a ponto de algumas vez ser retratado como um paradigma delas. Não deixou nenhum escrito, porem muitos de seus discípulos tiveram o cuidado de transmitir seu pensamento da melhor maneira que puderam. Poderíamos falar de muitos feitos de Sócrates, porem nos limitarem aos acontecimento explicam e resultam de sua atividade filosófica.

Antes de entrarmos nestes temas, há um assunto muito importante para tratarmos. No início de qualquer lição sobre a filosofia de Sócrates costumamos nos encontrar com um grande problema, o autor não escreveu nada. Assim, semelhante aos pré socráticos, temos que buscar sua filosofia em obras e comentários de outros autores. Tal semelhança, contudo, não exclui uma diferença muito importante que temos que ter em conta, isto é, o fato de que Sócrates tinha uma quantidade considerável de discípulos e seguidores que se empenharam em conservar da melhor forma possível sua filosofia. Isso quer dizer que os comentários, análises, resumos, exposições e testemunhos sobre Sócrates, quando feito por seus discípulos, possuem muito mais fidelidade do que os testemunhos sobre os pré socráticos que vinham de autores que, além de muitas vezes não terem um compromisso com os pensamentos desses autores, utilizavam o filosofar dos antigos para ilustrar e explicar suas próprias teorias. Outro ponto interessante é que, na medida em que falamos de discípulos de Sócrates, se tratam de testemunhos feitos por pessoas muito próximas do autor que conheciam o contexto e as diversas aplicações que o filósofo dava para suas teorias. Toda essa situação favorável aos estudo de Sócrates não exclui, todavia, algumas dificuldades que devem ser explicada e vencidas sobre as fontes que utilizamos para nos aproximarmos do autor.

2 – Fontes para o estudo de Sócrates
O ponto central de todas essas dificuldades no estudo da filosofia de Sócrates está no fato de que falamos de 3 fontes diferentes que, em muitos casos, discordam entre si. Essa problemática sobre fontes discordantes para o pensamento de Sócrates vem sido chamada ao longo dos anos de Questão Socrática, e sobre isso falaremos um pouco agora. Antes então de definirmos a melhor fonte para o pensamento de Sócrates, vejamos quais são elas.
a) As Nuvens de Aristófanes.
Aristófanes (444 a.C. – 385 a.C.) nasceu em Atenas e foi um grande comediógrafo a ponto de ser considerado um dos maiores representantes da comédia antiga. Mais ou menos em 420 a.C. apresenta uma comédia chamada As Nuvens, a qual fala de uma homem chamado Estrepisíades.Gastadora Esse personagem é contado como um sujeito que casou-se com uma mulher muito cara e que teve um filho que, nesse ponto, puxou bastante a mãe. Por conta dos gastos de sua esposa e filho, Estrepisíades se viu numa situação financeira complicada e buscou uma escola sofista para que, transformando seu discurso fraco em um discurso forte, fosse capaz de fugir das dívidas e evitar a falência. Ao chegar nessa escola, Estrapisíades conhece o dono que se chama Sócrates e descobre que ali eles não acreditavam nos deuses da religião grega, mas numa matéria etérea que eles chamavam de nuvem. Não conseguindo aprender a retórica, Estrepisíades manda seu filho, Fidípedes, para frequentar a escola de Sócrates. Ora, diferente de seu pai, Fidípedes se converte em um grande orador.Paulada O problema acontece quando, depois de discutir com seu pai, Fidípedes pega um bastão e começa a bater nele. Quando o povo da cidade vem para tirar satisfação com o rapaz, ele faz um grande discurso mostrando que era correto que um filho bata no próprio pai com um bastão. Isso causa uma grande revolta na população que se reúne para então queimar a escola desse homem chamado Sócrates. Obviamente isso não aconteceu de fato, afinal, se trata de uma história fictícia (tipo Harry Potter ou o Código Da Vinci). O problema é que isso passava uma certa mensagem sobre quem era Sócrates. Em suma, vemos o autor sendo retratado das seguintes formas:
-sofista (no mal sentido): que transforma um discurso fraco num discurso forte por meio de jogos de palavras e falácias;
-físico ateu: não credita nos deuses, mas numa matéria etérea;
-corruptor da juventude: ensina aos filhos a baterem nos pais.
De maneira especial, as duas últimas visões sobre Sócrates serão utilizadas como acusações para o levar a julgamento e o condenar a morte.

b) Platão (428 a.C. a 348 a.C.).
Cronologicamente, a segunda grande fontes que temos para o pensamento de Sócrates são os diálogos de Platão nos quais Sócrates costuma ser o protagonista. Platão vai então apresentar um Sócrates possuidor de grandes virtudes morais e uma inteligência muito aguçada. A primeira dificuldade que temos é que já temos uma forte oposição entre duas fontes, quer dizer, ou Sócrates é um paradigma de virtudes ou ele é o sofista, físico ateu e corrupto da juventude que apresenta a comédia de Aristófanes. Outra dificuldade é o fato de que Platão colocou em seus diálogos não somente o pensamento de Sócrates, mas também seu próprio pensamento, de modo que junto com as doutrinas socráticas temos ampliações, criações e revisões de Platão. Isso ainda se agrava por não existir um critério suficientemente eficiente para separar o que é só de Sócrates e o que é acréscimo de Platão. Apesar de por conta disso muitas vezes se dizer que o Sócrates de Platão não seria mais que uma auto expressão do autor, pretendo ao fim dessa nossa exposição apresentar um visão que tente mostrar que não é bem assim.

c) Xenofontes e os Socráticos menores.
Além de Platão, existe um grupo de discípulos de Sócrates que chamamos de socráticos menores. Sobre eles pretendo fazer alguns textos, de modo que não faz falta que eu explique agora quem são eles e o porquê de serem chamados assim. Xenofontes não era filósofo, mas político e historiador. O que diz apresenta algumas semelhanças e diferenças respeito ao testemunho dos Socráticos Menores.
Xenofontes não era filósofo, de modo que se limitou a escrever apologias para limpar o nome de Sócrates depois de sua condenação. Uma de elas é a Apologia de Sócrates (que não é a de Platão) e a outra algo que chamamos de Ditos e Obras Memoráveis de Sócrates. Esta segunda obra apresenta, tal como Platão, um Sócrates que é um paradigma de virtudes morais a través de uma série de relatos sobre a vida de Sócrates e seus atos e ditos virtuosos. Já os Socráticos Menores realmente desenvolveram um filosofia a partir do que pode ter dito Sócrates, porem não possuem muita unidade entre si e nos chegou pouco coisa deles. O maior problema, contudo, é que cada um desses autores parece estar tratando apenas de uma dimensão do pensamento de Sócrates, de modo que não se alcança toda sua riqueza (a filosofia de um não se estuda em partes, mas como um todo).

[Uma pausa rápida antes de continuarmos]
Pode parecer bobagem, mas essa última afirmação é bastante importante e, a essa altura do campeonato, eu já deveria ter falado disso. Como até agora não foi necessário fazer mais que um texto para cada pensador, ainda não tinha me preocupado com esse tema. A partir dos próximos textos, contudo, teremos autores como Platão e Aristóteles que se estenderão um pouco mais.
Obviamente, para estudarmos um filósofo que possui um doutrina muito extensa, é necessário que dividamos isso em partes. Essa divisão, contudo, não deve ser feita de maneira a colocar o pensamento do autor em compartimentos, mas de modo que fique claro que, apesar de assim apresentarmos, se trata de um pensamento só onde diferentes temas de fundamentam e nutrem mutuamente. Espero que isso fique mais fácil de entender quando começarmos a ver o pensamento de Platão, porem peço que desde já tentem pensar a filosofia de qualquer que seja o autor não como um estante cheia de prateleiras onde estão cada tema, mas como um grande quadro com partes distintas, mas que formam uma só paisagem.
[Voltando…]

Vistas as principais fontes para o pensamento do autor, vejamos como foi que elas foram sendo utilizadas pelos estudiosos nesse campo. A partir do século XIX d.C. se iniciou os questionamentos sobre quais fontes seriam as mais fidedignas para expressar o verdadeiro Sócrates e o que realmente era sua filosofia. Num primeiro momento, Aristófanes foi posto de lado como uma piada de mal gosto e, dessa forma, sem qualquer valor histórico e filosófico. Além disso, muitos passaram a dizer que o Sócrates de Platão era retratado como sendo muito mais inteligente do que realmente era, ou seja, que o autor teria pintados seu mestre com seu próprio brilhantismo, de modo que não seria uma boa fonte para conhecer a verdadeira filosofia de Sócrates. Com isso, ao se depararem com o Sócrates de Xenofontes, viram ali uma figura mais verossímil que as outras e fizeram dele a grande fonte para o pensamento de Sócrates. Tais críticas, no entanto, não se sustentaram por muito tempo e uma nova visão sobre essa questão surgiu.

Primeiramente reabilitaram a obra de Aristófanes ao dizer que provavelmente estaria falando de um Sócrates mais jovem. Ante isso alguém poderia acabar concluindo que Sócrates em sua juventude era exatamente o fanfarrão que se retrata em As Nuvens, porem isso seria deixar de lado uma dimensão muito importante no estudo de qualquer texto, seu género literário. Devemos ter em mente que Aristófanes não está escrevendo um relato biográfico e descritivo sobre Sócrates, mas uma comédia. Ora, o género literário grego que chamamos de comédia tem algumas características importantes que lançam luz a essa questão. Penso que podemos tentar entender esse género literário a partir de uma comparação com algo que é bastante comum hoje dia, as charges. Imagino que todos os que estão lendo esse texto sabem que me refiro àquelas imagens, normalmente de cunho político, que sempre saem nas capas dos jornais. Ora, se observamos bem essas imagens, podemos identificar pelo menos duas características.

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 A primeira é que costumam fazer referências a pessoas reais, a segunda é que essas pessoas são retratadas em forma de caricaturas, isto é, com traços exagerados que pretende provocar humor. Podemos dizer que essas duas características também estão presentes na comédia de Aristófanes, de modo que devemos perceber as informações que nos transmitem como tendo uma base na realidade, mas retratando características exageradas para produzir graça no leitor. Com isso em mente, podemos entender As Nuvens como um forte testemunho sobre a existência histórica de Sócrates, algo que por alguns estudiosos foi posto a prova; e também como uma retratação caricaturada do pensador. Assim, voltando ao que dissemos no início desse parágrafo, o Sócrates que nos transmite Aristófanes é um Sócrates mais jovem, do qual sabemos que realmente teve interesses nas filosofias pré socráticas, mas que acaba tendo algumas características aumentadas para fins cômicos. Além de aumentar características do próprio Sócrates, parece que Aristófanes também acrescenta algumas que não dizem respeito ao filósofo, mas sim aos sofistas em geral. Tal acréscimo, contudo, parece razoável se tivermos em mente que, além do género literário de uma obra, o contexto no qual está imerso um autor delimita bastante seu trabalho.
Se então nos debruçamos sobre a relação entre Sócrates e os sofistas, temos que o contexto geral é o de confusão.
DisfarceEssa confusão vem do fato de que, durante a atividade de Sócrates e dos sofistas, era muito difícil fazer entre eles uma distinção.
Como vimos em outro post, as diferenças entre um e outros era mínima e constava apenas no fato de Sócrates não cobrava por seus ensinamentos e de que pensava na virtude como algo distinto da excelência política tal como os sofistas. Assim, uma das coisas mais fáceis de se fazer na Grécia do século V a.C. era confundir a Sócrates com mais um sofista que passava por Atenas (mais tarde, veremos como que esse testemunho de Aristófanes foi determinante para a acusação e condenação do filósofo). Uma vez reabilitado Aristófanes, os acadêmicos passaram a olhar de outra maneira para Platão e Xenofontes.

Se antes o segundo parecia ser mais verossímil, pouco depois se percebeu que talvez não fosse bem assim. Para isso, foi necessário observar que as diferenças entre Platão e Xenofonte se dão exatamente no ponto de vista que cada um deles possuía. Xenofonte, sendo um político e historiador, provavelmente não seria capaz de captar todo o brilhantismo da filosofia socrática, de modo isso o levava a falar de um Sócrates muito menos inteligente do que poderia realmente ser. Por outro lado, Platão foi um filósofo brilhante, de modo que podemos supor que somente ele teria sido capaz de captar toda a densidade do pensamento socrático. Ao fim, se passou a acreditar que Sócrates era sim um homem brilhante, mas que nem todos que conviveram com ele foram capazes de retratar isso tal como fez Platão. De fato, um Sócrates muito menos inteligente do que fala Platão não seria capaz de fazer com que pessoas de todas as partes da Grécia Antiga se deslocassem para Atenas somente para dialogar com ele e escutar sua doutrina. Temos então que Platão é restituído como uma fonte segura do pensamento de Sócrates e, do meu ponto de vista, a melhor e mais importante. Xenofonte, por outro lado, foi percebido como um autor bastante parcial e em alguns pontos pouco confiável, pois sua atividade anti democrática parece ter influenciado muito sua montagem do personagem Sócrates, quer dizer, teria utilizado o filósofo como um mártir injustiçado pelo regime democrático com a finalidade de criticar essa tendência política. Apesar de tudo isso, é importantíssimo ter em mente que, hoje em dia, não importa a fonte que um ou outro ache mais ou menos confiável, o que importa é que os autores e estudiosos do assunto tenham a capacidade de integrar todas as fontes conhecidas para cada vez mais aprofundarem-se na pessoa de Sócrates. Se eu digo que penso em Platão como a melhor das fontes, não significa que posso dispensar todas as outras, incluso, posso acrescentar algumas mais, como por exemplo, Aristóteles.

3 – Apología de Sócrates
Sobre os acontecimentos da vida de Sócrates que têm relação com sua atividade filosófica, penso que a melhor maneira de apresentarmos é a partir de uma obra de Platão intitulada de Apologia de Sócrates (a de Platão). Sócrates é formalmente acusado por três sujeitos de ser impiedoso para com os deuses e de corromper a juventude, de modo que deve se defender ante o tribunal. Ao longo dessa defesa, Sócrates começa a explicar que, além dos motivos políticos envolvidos na questão (o fato de que muitos pensavam que Sócrates era afim ao Governo dos 30 tiranos e por isso era considerado um anti democrata), a principal razão de estar sendo acusado foi justamente sua atividade filosófica em Atenas. Desse modo, Sócrates vai justificar o motivo pelo qual atua de tal modo explicando em que consiste o que sua atividade em Atenas.

A primeira característica dessa obra é o fato de que ela não nos transmite os discursos feitos pelos acusadores de Sócrates, mas somente a sua defesa. Apesar disso, o próprio texto supõe que havia acabado de ser feito um discurso contra Sócrates que então seria respondido. A resposta de Sócrates começa com um crítica a seus adversários no sentido de que, apesar de terem sido capazes de falar “muito bem”, não transmitiram nada de verdadeiro. Nisso já podemos ver uma crítica que Platão faz, pela boca de Sócrates, ao método retórico sofistas, quer dizer, que se trata de uma maneira de apresentar os argumentos muito eficiente para a persuasão, mas que nesse caso faltava com a verdade. Ainda que não possamos aprofundar essa problemática agora, ao menos já deixamos essa informação que, futuramente, precisaremos para seguir nosso estudo. Outro ponto importante para entendermos a defesa do autor é que, além dos ataques explícitos que recebeu no tribunal, existiam outras acusações que se faziam ao filósofo em meio do povo ateniense. Isso fica bastante claro quando, ainda bem no começo do discurso, o filósofo diz que deve começar se defendendo dos primeiros acusadores e depois dos segundos.
Sobre os segundo acusadores, me parece que se trata de algo um pouco mais simples, pois são adversários concretos (Anito, Melito, Licón) que apresentaram acusações formais (ser impiedoso com os deuses e corromper a juventude). Tais acusadores, ainda que fossem terríveis, não causavam tanto medo em Sócrates quanto os que ele chama de antigos acusadores.
Para entendermos o motivo disso, me parece apropriado vermos uma pequena passagem da obra de Platão.

Mais temíveis porém são os primeiros, ó cidadãos, os quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo- vos que há um tal Sócrates, homem douto, especulador das coisas celestes e investigador das subterrâneas, e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses, cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que eu temo; pois aqueles que os escutam julgam que os investigadores de tais coisas não acreditam nem mesmo nos Deuses. Esses acusadores são muitos e me acusam há muito tempo; e, além disso, vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito, quando éreis crianças e alguns de vós ainda muito jovens, acusando-me com pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o que é mais absurdo é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto, talvez, algum comediógrafo. Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os que, convencidos, procuravam persuadir a outros, são todos, por assim dizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui, nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase combatendo com sombras, sem que ninguém me responda.

Podemos perceber ao fim dessa citação, o motivo principal pelo qual esses primeiros acusadores são mais perigosos.
Eles não tinham nomes, quer dizer, não eram pessoas que se colocavam diante de Sócrates para o acusar, de maneira que Sócrates era atacado sem poder se defender.
Além disso, diz que esses acusadores são muito e já o acusavam há muito tempo, de modo que podemos pensar em uma seria de calunias feitas sistematicamente para prejudicar a Sócrates.
Outro ponto, é que contavam essas mentiras para pessoas que ainda era muito jovens e que, assim sendo, seriam mais suscetíveis as aceitar e construir um imagem má sobre o autor, de modo que uma vez que acreditavam nisso, sem perceber a injustiça que cometiam, passaram a convencer outras pessoas sobre as mesmas mentiras.

[Uma Breve comparação para entendermos melhor]
Talvez possamos entender melhor isso se utilizarmos um exemplo mais próximo da nossa realidade.
Imagine que uma figura pública de nosso país está sendo atacada com uma série de calunias ou exageros retóricos.
Enquanto esse ataque está confuso e disperso em uma série de posts e imagens que circulam nas redes sociais, fica praticamente impossível combater esses ataques, afinal, por não haver um discurso lógico e coerentemente formado, mas somente uma serie de insinuações, fica extremamente difícil construir um refutação lógica e bem argumentada.
Se, por conta de uma ato de descuido, algum desses acusadores resolve escrever um longo texto (ou dar uma entrevista, sei lá) sobre o assunto onde copila todas as acusações, no fim das contas fica mais fácil para aquele que está sendo acusado de defender-se, afinal, não se tratam mais de insinuações que ninguém sabe de onde vem nem de conclusões das quais não são apresentadas premissas, mas de um texto coeso que pode então ser analisado e refutado.
Claro que estamos falando de uma situação hipotética onde as acusações são falsas, afinal, se fossem verdadeiras, o melhor mesmo seria apresentar diretamente de maneira coesa.
A conclusão é de que, entre caluniadores, os mais perigosos não são aqueles que caluniam por conta de um discurso coeso (pois sendo mentira fica fácil refutar), mas sim os que mentem de maneira sistemática, mas confusa, de modo que não permite ao caluniado se defender.
Além disso, uma outra situação hipotética seria a de uma sociedade onde desde pequenos os jovens vão recebendo nas escolas uma série de valores que, mais tarde, permitirão que eles aceitam com docilidade conclusões, muitas vezes absurdas, que são consequências do que aprenderam.
Talvez, se não tivessem sido assim doutrinados quando pequenos, teriam mais facilidade em rechaçar certos absurdos que, hipoteticamente, seus professores da faculdades viessem a dizer.
Mas enfim, o importante é que vocês tenham entendido o perigo que é para Sócrates (e para qualquer um) essa classe de acusações.
[Voltando ao que nos toca]

Pois bem, ao que me parece, temos que aquele retrato de Sócrates que foi construído en As Nuvens (sofista, físico ateu e corruptor da juventude) foi sendo propagado por um grupo de atenienses que tinha inimizade com o filósofo.
Sócrates tem então a missão de refutar essas duas acusações contra sua pessoa: de que é um sofista e de que é um físico ateu.
Vejamos então, com outro trecho da mesma obra, como Sócrates vai reagir a essas acusações.

Alguns de vós poderiam talvez se opor a mim: Mas Sócrates, o que é que fazes? De onde nasceram tais calunias? Se não tivesses te ocupado em alguma coisa tão diversa das coisas que os outros fazem, na verdade não terias ganho tal fama, e não teriam nascido estas acusações contra ti. Diz, pois, o que é isso, a fim de que não te julguem a esmo.
Quem assim fala, parece-me que fala justamente, e eu procurarei demonstrar-vos que jamais foi essa a causa de tal fama e de tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade. Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por alguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvez propriamente, a sabedoria humana.

O texto fala de uma ocupação de Sócrates que era diversa da ocupação dos demais e que seria o motivo que levou o filósofo a ter uma fama tão ruim entre seus concidadãos.
De certo modo, seria como se alguém sugerisse a ele que, alguma coisa de errado ele fez para que sofresse calunias, quer dizer, não pode que essas calunias simplesmente comecem a serem ditas dele sem nenhum motivo.
Sócrates então diz que vai explicar os motivos pelos quais as calunias começaram a surgir, isto é, de modo que para isso terá que explicar qual era sua atividade como filósofo, motivo pelo qual começou a ganhar o ódio de tantos atenienses.
Iremos então nos aproximar de sua defesa deixando um pouco de lado sua filosofia (pois ela trataremos mais tarde) e nos focando na metodologia de sua atividade.
Vamos então recordar as acusações que recebia Sócrates, pois são elas que ele vai ter em mente no seu discurso.
-Físico Ateu;
-Corruptor da Juventude;
-Sofista;
-Anti Democrata (essa acusação não foi feita formalmente por conta da anistia que se instituiu com o fim do Governo dos 30 Tiranos).
Tendo essas acusações em mente, Sócrates começará a explicar sua atividade filosófica que lhe causou tantos problemas.

Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis contra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda: pois que não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a outro que é digno de vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o Deus de Delfos como testemunha de minha sabedoria, se eu a tivesse, e qualquer que fosse. Conheceis bem Querofonte. Era meu amigo desde jovem, também amigo do vosso partido democrático, e participou de vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era Querofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de fato, indo a Delfos, ousou interrogar o Oráculo a respeito disso e – não façais rumor, por isso que digo – perguntou-lhe, pois, se havia alguém mais sábio do que eu. Ora, a Pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. E a testemunha disso é teu irmão, que aqui está.

Sócrates começa dizendo que o Oráculo de Delfos, que falava em nome do Deus Apolo, afirmou que Sócrates seria o mais sábio dentre os homens.
Uma vez que teve notícia disso, Sócrates ficou bastante curioso, pois diz que até então não se considerava sábio.
Assim, diz que começou a se perguntar qual seria o sentido desse oráculo, afinal, era normal que esses os ditos dos oráculos fossem um tanto quanto misteriosos.
Ora, vejamos no texto da Apologia o que aconteceu então:

Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio dele, sem dúvida, o Oráculo, e, com tais provas, opor- lhe a minha resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o mais sábio. Examinando esse tal; não importa o nome, mas era, cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava essa impressão; e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.

Ora, isso que Sócrates diz que fez com um dos políticos de Atenas, podemos ver que, ao longo de seu discurso, diz ter feito com muitos outros que seria também considerados sábios: poetas trágicos, artífices etc.
Ele se aproximava dos supostos sábios de seu tempo e faziam com ele um exame para descobrir se ele realmente eram sábio naquilo que pareciam ser, e o resultado era que não.
Com isso, Sócrates compreendeu o sentido do oráculo.
Ele era o mais sábio no sentido de que tinha consciência de sua própria ignorância, enquanto que os outros pensavam saber o que realmente não sabia.
[Não pretendo entrar agora no tema sobre a verdadeira sabedoria, porem peço que guardem essa conclusão de Sócrates]

Cercado de inimigos.jpgO problema é que a cada vez que Sócrates ia refutando seus adversários, ia ganhando mais e mais inimigos, afinal, ninguém gosta de ser refutado.
Foram essas inimizades e esse ódio que permitiram o surgimento de tantas acusações.
Ao fim, ele foi se transformando no “inimigo público número 1” para muitos atenienses.

Por isso, ainda agora procuro e investigo segundo a vontade do Deus, se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e quando não, indo em auxílio do Deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, ocupado em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas encontro- me em extrema pobreza, por causa do serviço do Deus.
Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo- me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém lhes pergunta o que é que ele faz e ensina, não têm nada a dizer, pois ignoram, e para não parecerem embaraçados, dizem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos Deuses, e a tornar mais forte a razão mais débil.
(Apologia de Sócrates, 23b)

Em estas poucas linhas de discurso, Sócrates mostra a fraqueza das acusações que recebia. Era chamado de corruptor da juventude porque os jovens imitavam seu exame e começavam a refutar os demais, algo que era colocado na conta de Sócrates. O que acontece é que isso que faziam os jovens, ainda que provavelmente não tinha a mesma finalidade que a de Sócrates (se bobear a molecada fazia só pra zoar mesmo), não se tratava de uma refutação injusta, mas de simplesmente mostrar aos refutados que sabiam muito menos do que estimavam. Já as acusações sobre ele ser sofista e físico ateu, que respectivamente estariam na afirmação de que Sócrates “transforma em forte a razão mais débil” e “ensina coisas celestes e terrestres, e a não acreditar nos deuses”, Sócrates diz que são fruto da ignorância de seus acusadores sobre sua doutrina e de generalizações que as pessoas tinham sobre a atividade dos filósofos (seria algo como dizer que todo pastor só quer dinheiro).
Depois então de se defender dos antigos acusadores, Platão dor como foi a defesa contra aquelas que concretamente o estavam acusando naquele juízo. Tal explicação, contudo, não possui aqui muito interesse.

Sabendo que o motivo de Sócrates ser odiado em Atenas foi justamente o exame que fazia, fica um pergunta no ar: porque ele não parou com isso depois de descobrir o significado do oráculo? De fato, tal como acabamos de ler na ultima citação, o mesmo autor diz que essa atividade de ir examinando as pessoas também fez com que ele se descuidasse de seus negócios e acabasse ficando extremamente pobre. Sendo assim, no próximo texto veremos não só em que consistia o exame socrático, mas também os motivos pelos quais Sócrates seguiu fazendo isso mesmo sendo algo que o prejudicava em sua vida pessoal.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza.

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-MOTTA, Guilherme Domingues da. Glaucón, Admanto e a Necessidade da Filosofia. Kléos, Rio de Janeiro, n. 9/10, p. 87-112, 2005
-POMPEU, Ana Maria Cesar. Aristófanes e Platão: A Justiça na Polis. São paulo: Universidade de São Paulo, 2004
-REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. I, 1993